Esta página tem por finalidade colocar à disposição dos meus alunos da Escola Teológica Rev. Celso Lopes o material referente às aulas da matéria título do blog.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Aula 6 - A ortodoxia luterana


< Martinho Lutero
A reforma proposta e começada por Lutero era de caráter doutrinário e não meramente prático. Lutero criticava a corrupção que se havia tornado tão comum na vida da igreja. Mas esse não era o tema principal de seu conflito com a Igreja Romana. Esse conflito devia-se a razões teológicas que já vimos. Por isso, Lutero estava convencido de que a reta doutrina era de especial importância para a vida da igreja.
Por outro lado, isso não queria dizer que todos teriam que pensar exatamente como ele. Durante vários anos, seu principal colaborador foi Felipe Melanchthon que discordava dele em muitos pontos. O próprio Lutero gostava de dizer que ele era como o lavrador que cortava as árvores e tirava as grandes pedras, e que Melanchthon vinha depois para arar e semear. De igual modo, ainda que posteriormente se tenha falado muito, e com razão, das diferenças entre Lutero e Calvino, o fato é que, quando o reformador alemão leu a primeira edição da Instituição da religião cristã, comentou muito favoravelmente sobre ela.
Mas nem todos os luteranos tinham tal amplitude mental. Logo alguns deles começaram a insistir em um luteranismo estrito e cada vez mais rígido. No século dezesseis, isto deu lugar ao conflito entre "filipistas" e luteranos estritos e, no dezessete, à "ortodoxia luterana".

Filipistas e luteranos estritos
Depois da morte de Lutero, Melanchthon ocupou seu lugar como o principal intérprete da teologia luterana. Sua obra, Temas teológicos, veio a ser um dos principais textos para o estudo da teologia e foi publicada repetidamente, sempre com novas revisões por parte de seu autor.
Mas havia quem pensasse que Melanchthon não representa¬va fielmente a teologia do falecido Reformador. O ponto fundamental de discrepância, dos quais derivavam os demais, era o espírito humanista do "Mestre Felipe" — como Lutero lhe chamava. Quando o Reformador rompeu com Erasmo e seu humanismo, Melanchthon continuou as relações cordiais com o ilustre erudito. Isso devia-se, em parte, ao espírito agradável do "mestre Felipe". Devia-se também ao fato de que Melanchthon não estava completamente de acordo com o tom radical de Lutero em seus ataques contra a "miserável razão". Por motivos semelhantes, Melanchthon, ao mesmo tempo que afirmava a justificação pela fé, insistia na necessidade das boas obras, ainda que não como meio de salvação, senão como resultado e testemunho dela.
O conflito entre "filipistas" e os luteranos estritos estourou em volta do ínterim de Augsburgo. Como vimos ao tratar sobre a Era dos reformadores, este foi um modo de conseguir a paz, ao menos temporariamente, entre católicos e luteranos. Nenhum dos luteranos acreditava que o ínterim era um grande documento. Mas a pressão imperial era grande e, por fim, os teólogos de Wittenberg, com Melanchthon liderando, consentiram assinar o ínterim de Leipzig, que era uma versão modificada do de Augsburgo.
Os luteranos estritos que haviam se negado a assinar o ínterim mesmo frente a autoridade imperial, acusaram os "filipistas" de Wittenberg de haverem abandonado vários elementos da doutrina luterana. A resposta de Melanchthon estabelecia uma distinção entre os elementos essenciais do evangelho e os periféricos, aos que dava o nome grego de "adiáfora". O essencial não devia e nem podia ser abandonado sob nenhuma circunstância. O que era "adiáfora", sem deixar de ser importante, não era imprescindível. Logo, em uma situação como a que existia, justificava-se abandonar alguns elementos que eram secundários, a fim de salvaguardar a liberdade de continuar pregando e ensinando o essencial do Evangelho. A tudo isso os luteranos estritos, liderados por Matias Flacio, respondiam que, mesmo sendo certo que existam elementos periféricos de importância fundamental, existem também circunstâncias onde se requer uma clara confissão de fé. Nessas ocasiões, certos elementos que poderiam parecer secundários tornaram-se símbolos da mesma fé. Quem os abandona nega-se a confessar sua fé. Quem verdadeiramente quer dar o testemunho claro, que se requer, nega-se a abandonar esses elementos periféricos, temendo que tal abandono seja interpretado como uma capitulação. Ao aceitar o ínterim de Leipzig, os "filipistas", ainda que não tivessem feito outra coisa que ceder no periférico, negaram-se a confessar sua fé.
A este conflito logo se ajuntaram outros. Os luteranos estritos acusavam os filipistas de darem demasiada importância à participação humana na salvação. Melanchthon, que nunca havia estado completamente de acordo com o que Lutero havia dito acerca do "arbítrio escravo", pouco a pouco foi concedendo maior importância ao arbítrio humano e, por fim, chegou a falar de uma colaboração entre o Espírito, a Palavra e a vontade humana. Frente a ele, os luteranos estritos enfatizavam a corrupção da natureza humana como consequência do pecado. Flacio chegou mesmo a dizer que a natureza do ser humano caído é corrupta.
Logo os luteranos estritos começaram a acusar os filipistas de serem na realidade calvinistas e não luteranos. Um deles fez uma comparação entre Lutero e Calvino no que se refere ao sacramento da comunhão. Tratou de provar que muitos dos pretensos luteranos, na realidade eram calvinistas.
Todas estas controvérsias (e outras que não mencionamos, mas de semelhante teor) levaram, por fim, à Fórmula de Concórdia de 1577. Na maior parte das questões debatidas, essa Fórmula tomava uma posição intermediária entre ambos os extremos. Assim, por exemplo, a Fórmula declara que é verdadeiro que haja certos elementos que não são essenciais ao evangelho, mas acrescenta que, em tempos de perseguição, não é lícito sequer abandonar esses elementos periféricos. No que se refe¬re à relação entre a predestinação e o livre arbítrio, a Fórmula adota também uma posição intermediária entre as de Melanchthon e Flacio.
Mas, quanto à comunhão, a Fórmula seguiu o caminho do luteranismo estrito, dando a entender que não há diferença apreciável entre a posição de Zwinglio, que Lutero rebateu em Marburgo, e a de Calvino. O resultado disto foi que, a partir de então, uma das características essenciais do luteranismo foi sua doutrina acerca da presença de Cristo na comunhão, expressa em termos de sua oposição ao calvinismo.

A ortodoxia
Enquanto o período anterior da Fórmula de Concórdia caracterizou-se pelas controvérsias entre os luteranos estritos e os "filipistas", as gerações seguintes se dedicaram a unir intimamente os ensinamentos de Lutero com os de Melanchthon. Esse já era o espírito da Fórmula e de seu principal arquiteto, o teólogo Martin Chemnitz — cuja teologia, ao mesmo tempo que aceitava a maior parte das proposições dos luteranos estritos, seguia uma metodologia semelhante a de Melanchthon. Para Chemnitz, o importante era reconciliar as diversas posições dentro do luteranismo e contornar seus pontos de divergências, tanto com o catolicismo como com outros ramos protestantes.
A teologia que surgiu desse novo espírito chamou-se "escolasticismo protestante" e dominou o pensamento luterano durante o século dezessete e boa parte do dezoito.
A principal característica do escolasticismo protestante foi sua ênfase no pensamento sistemático. Lutero nunca tratou de expor todo um sistema de teologia, nem sequer de desenvolver tal sistema. Melanchthon escreveu uma breve obra sistemática que logo gozou de grande estima. Mas os teólogos da escolástica protestante escreveram grandes obras sistemáticas que tanto por sua extensão como pelo detalhe de suas análises, podiam comparar-se às grandes sínteses da escolástica medieval.
Por exemplo, a principal obra de João Gerhardt compreendia nove grandes volumes que, na edição seguinte, se tornaram vinte e três. Abraham Calov publicou, entre 1655 e 1677, uma teolo¬gia sistemática em doze volumes. Nessas obras, tentava-se tratar, ponto por ponto e ordenadamente, todas as questões teológicas imagináveis.
Outra característica da escolástica protestante, e que a fa¬zia semelhante à medieval, era seu uso de Aristóteles. Lutero havia dito que, para ser teólogo, era necessário desfazer-se de Aristóteles. Mas, pelo fim do século dezesseis, houve um desper¬tar do interesse pela filosofia aristotélica, e logo quase todos os teólogos luteranos estavam empenhados em expor a teologia de Lutero em formas da metafísica aristotélica. Ainda mais, alguns deles faziam uso das obras filosóficas dos jesuítas, que também tinham se dedicado a fazer sua teologia sobre a base de Aristóteles. Portanto, ao mesmo tempo que em conteúdo, a escolástica protestante opunha-se radicalmente ao catolicismo romano, em seu tom de metodologia se parecia muito com a teologia católica da época.
A terceira razão porque a teologia luterana do século dezesseis recebeu o nome de "escolasticismo" é que foi o principal produto das escolas. Não se tratava já, como no século dezesseis, de uma teologia nascida da vida da igreja e dirigida para a pregação e cuidado pastoral, mas de uma teologia nasci¬da nas universidades e dirigida principalmente para outros teólogos.
Ainda que a escolástica protestante tenha caído em desuso em fins do século dezoito, deixou dois legados importantes: sua doutrina da inspiração das Escrituras e seu espírito de rigidez confessional.
Lutero nunca havia tratado, especificamente, sobre a inspiração das Escrituras. Naturalmente, estava convencido de que as Escrituras haviam sido inspiradas por Deus e que, portanto, eram a base de qualquer afirmação teológica. Mas nunca discutiu em que consistia a inspiração. Para ele, o importante não era o texto da Bíblia, mas a ação de Deus da qual esse texto dá testemunho. A Palavra de Deus é Jesus Cristo, a Bíblia é a Palavra de Deus porque nos leva a ele e nos dá testemunho dele. Mas os luteranos da escolástica protestante suscitaram a questão: Em que sentido a Bíblia é inspirada?
A resposta da maioria deles foi que o Espírito Santo não só disse aos autores o que tinham de escrever, mas que também lhes ordenou que o escrevessem. Tal doutrina era importante para rebater o argumento em favor da tradição de alguns católicos, que diziam que os apóstolos comunicaram a seus discípulos algumas coisas por escrito e outras verbalmente. Se os apóstolos deixaram a seus discípulos ensinamentos orais ou não, não importa, pois tais ensinamentos não seriam inspirados. O único inspirado é o que o Espírito disse aos apóstolos e profetas que escreveram.
A outra pergunta que estes teólogos suscitaram com respei¬to à inspiração das Escrituras é: Até que ponto a individualidade de cada autor determinou o que escreveram? A resposta mais comum foi que os autores bíblicos não foram mais do que copistas ou secretários do Espírito Santo. O que escreveram foi, letra por letra, o que o Espírito lhes disse. Mas o Espírito conhecia a individualidade de cada autor e, portanto, ditou a cada um segundo sua própria personalidade e estilo. É por isso que as epístolas de Paulo, por exemplo, são distintas das de João.
Tudo isso levou a uma ênfase na inspiração da Bíblia letra por letra. É interessante notar que, ao mesmo tempo que alguns teólogos afirmavam que a Vulgata (a tradução da Bíblia em Latim) tinha sido inspirada pelo Espírito Santo, havia teólogos luteranos que afirmavam que o Espírito Santo inspirou os rabinos que, durante a Idade Média, associaram as vogais ao texto hebraico (o texto original somente tinha consoantes).
O espírito de rigidez confessional da escolástica protestante pode ser visto na controvérsia que ocorreu em torno da obra de Jorge Calixto.

Jorge Calixto e seu "sincretismo"
Jorge Calixto era um luterano sincero que estava convencido de que, mesmo sendo o luteranismo a melhor interpretação das Escrituras, isso não bastava para declarar que todos os demais eram hereges ou falsos cristãos. As controvérsias da época e, em particular, o modo como os cristãos de diversas confissões se atacavam mutuamente, lhe parecia uma negação do espírito do evangelho. Com efeito, era necessário buscar uma aproximação. Mas, ao mesmo tempo, tal aproximação não devia levar à negação do luteranismo.
Com esse projeto em mente, Calixto estabeleceu uma distinção semelhante a de Melanchton entre o fundamental e o secundário. Tudo o que está nas Escrituras tem sido revelado por Deus, mas nem tudo tem igual importância. O fundamental e absolutamente necessário é o que se refere à salvação. Os demais são também importantes, pois são parte da revelação divina e, portanto, não podemos nos desinteressar deles. Porém, não é o fundamental. Em outras palavras, existe uma diferença entre a heresia e o erro. A heresia consiste em negar parte do que é essencial para a salvação. O erro consiste em negar algum outro aspecto da verdade revelada. Tanto a heresia como o erro são maus e devem ser evitados. Mas unicamente a heresia deve ser obstáculo para que tenhamos comunhão uns com os outros.
Como saber o que é fundamental e o que não é? Para responder a esta questão, Calixto apela ao que ele chama "o consenso dos primeiros séculos". Durante os primeiros cinco séculos da vida da igreja, existiu certo consenso. Algumas posições foram condenadas como heréticas, e nós devemos fazer o mesmo. Não devemos declarar que algo, que não se encontra nos escritos desses primeiros séculos, é fundamental para a salvação. De outro modo, chegaríamos à conclusão de que ninguém se sal¬vou durante os primeiros séculos da vida da igreja.
Isso não quer dizer que devemos crer unicamente no que se encontra nos escritos desses cinco primeiros séculos. Ao contrário, devemos crer em tudo o que se encontra nas Escrituras. Mas existem muitas coisas que se encontram nas Escrituras e não se encontram nos primeiros séculos da história da igreja. Tais coisas devem ser cridas. Quem nelas não crê, cai no erro. Assim sendo, não é herege.
A doutrina da justificação pela fé é um exemplo disso. Essa doutrina encontra-se, indubitavelmente, nas Escrituras. No entanto, não forma parte da fé comum da igreja nos primeiros séculos. Em consequência, ainda que importante, não se exige de todos, como quem nela não cresse fosse considerado herege. Ainda que Lutero tivesse razão, e devemos sustentar sua doutrina, isso não há de nos levar a declarar que os católicos são hereges. O mesmo há de se dizer com respeito à presença de Cristo na comunhão e os calvinistas. Apesar dos calvinistas estarem equivocados, não são hereges.
Desse modo, Calixto esperava chegar a um maior entendi¬mento e aceitação mútua entre os cristãos de diversas confissões. Por isso o consideraram um dos precursores do movimento ecumênico.
Entretanto, os defensores da ortodoxia luterana não estavam dispostos a aceitar as idéias de Calixto. Abraham Calov declarou, enfaticamente, que tudo quanto Deus havia revelado nas Escrituras era absolutamente necessário.
Quem nega ou rejeita parte dela, por muito pequena ou insignificante que essa parte pareça, nega ou rejeita o próprio Deus. Outros teólogos, sem ir tão longe, diziam que, ao introduzir a questão do "consenso dos primeiros cinco séculos", Calixto havia voltado a dar à tradição o papel que Lutero lhe havia tirado. Logo, as idéias de Calixto passaram a chamar-se de "sincretismo" com o qual se dava a entender, falsamente, que Calixto dizia que se devia tomar um pouco de cada uma das confissões cristãs, ou que todas eram igualmente válidas. O único lugar onde o projeto de Calixto teve acolhida favorável foi na Polônia, onde o rei Ladislao IV tratou de colocá-las em prática, estabelecendo um diálogo entre teólogos de diversas confissões. Esse diálogo fracassou. O "sincretismo" de Calixto não teve maiores consequências positivas.
Todavia, isso serve para ilustrar o modo como os teólogos ortodoxos de cada uma das principais confissões, iam se refugiando em suas posições, como se os únicos que mereciam o nome de cristãos fossem os que concordassem com eles em todos os detalhes de sua doutrina.
Esse dogmatismo extremo, ao mesmo tempo que criava partidários decididos, dava lugar a dúvidas cada vez mais generalizadas a respeito da fé cristã ou, pelo menos, do valor da teologia.

3 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns pelo seu Blog, ele é excelente e de grande ajuda a todos nós que desfrutamos de tudo que você tem postado.
Paz!
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Anônimo disse...

Seu post nos leva a refletir muito sobre a vida que levamos.
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Unknown disse...

Excelente seu blog.
Parabéns!

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Quem sou eu

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Sou pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, mestrando em Divindade (Magister Divinity), pelo CPAJ (Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper). Sou também professor de História da Igreja, de Introdução Bíblica, e Cartas Gerais, na Escola Teológica Rev. Celso Lopes, em Maceió AL. Além disso, sou coronel-aviador da Força Aérea Brasileira, já reformado.

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