Esta página tem por finalidade colocar à disposição dos meus alunos da Escola Teológica Rev. Celso Lopes o material referente às aulas da matéria título do blog.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Aula 5 - A ortodoxia católica


Ao final do Concílio de Trento, no ano de 1563, havia-se fixado o que seria a ortodoxia católica durante os próximos quatro séculos. Além disso, havia-se promulgado todo um programa de reforma. Mas, tanto essa ortodoxia como essas refor¬mas não precisavam de opositores às fileiras católicas. Por um lado, o programa tridentino baseava-se na centralização do poder em torno da pessoa do papa. Isso ia contra os interesses dos governos seculares, particularmente das monarquias, que, precisamente nesta época pretendiam fazer-se mais absolutas. Por outro lado, não faltavam prelados para quem a vida austera e as reformas dos costumes propostos pelo Concílio, constituíam-se num sacrifício inaceitável. Por último, havia os que pensavam que, em seu entusiasmo de condenar as teses protestantes, os teólogos tridentinos exageraram e que, portanto, era necessário recuperar algumas das antigas teses de Santo Agostinho sobre a superioridade da graça na salvação humana.

O galicanismo e a oposição ao poder do papado
Um dos principais pontos do programa da retorna colocado pelo Concílio de Trento, foi a centralização do poder eclesiástico. O Concílio mesmo teve que ser convocado porque o pa¬pado precisava da autoridade necessária para responder aos desa¬fios do protestantismo. Mas o resultado das deliberações conciliares foi um intento de devolver aos papas a autoridade que haviam tido no apogeu do seu poderio, durante o que chamamos a "Era dos Altos Ideais". Assim, o papado que no início das deli¬berações do Concílio, precisava de prestígio e autoridade, ficou encarregado de dirigir a vida de toda igreja.
Mas essas decisões por parte do Concílio coincidiram e chocaram-se com outros processos políticos que estavam ocorrendo. Era a época do absolutismo real. Já temos visto as opi¬niões que tinham James l e Carlos II acerca das prerrogativas dos reis. Semelhantes idéias circulavam na Espanha, Áustria e França, onde tinham melhor êxito. A isto, unia-se o crescente sentimento nacionalista que levava muitos a pensar que o papa não tinha razão para mistura-se nos assuntos de seus países.
Esse sentimento nacionalista, que tratava de limitar os poderes do papa, recebeu o nome de "galicanismo" (de "Galia", o antigo nome da França), porque foi na França que recebeu maior força. Frente a isso, levantou-se o partido dos "ultramontanos", nome dado àqueles que sustentavam que o centro de autoridade eclesiástica encontrava-se em Roma, "mas além dos montes" (os Alpes).
Como vimos anteriormente, durante as últimas décadas an¬tes da Reforma, o papado existiu sob a sombra do trono francês, que havia conseguido numerosas concessões no que dizia respeito à vida eclesiástica francesa. Prontamente, chamou-se tais con¬cessões de "As Liberdades da Igreja Galicana", por defendê-las com fervor patriótico. Em consequência, os franceses eram católicos à sua maneira, como se pode ver quando Henrique IV, apesar de estar excomungado por Roma, foi feito rei e o clero católico retirou a excomunhão sem consultar o papa.
Estes sentimentos galicanos dificultavam a aplicação dos decretos tridentinos dentro do território francês. Ainda que o próprio Henrique IV, através de uma série de negociações com Roma, se comprometesse a promulgá-los no país, o Parlamento e boa parte do clero opuseram-se, e o Concílio não chegou a ter validade na França.
Em 1615, cinco anos depois do assassinato de Henrique IV, os decretos do Concílio ainda não haviam sido promulgados pelo governo francês e o clero nacional decidiu fazê-lo por conta própria. Ainda que isto pudesse ser feito, porque neste momento boa parte do clero inclinava-se para o ultramontanismo, o próprio fato de que foi o clero francês que decidiu acerca da validade do decreto do Concílio em seu país, daria depois mais argumentos aos defensores das "liberdades galicanas".
O galicanismo tinha, por assim dizer, dois ramos. Havia quem defendesse as "liberdades galicanas" por sentimentos nacionalistas, enquanto outros o faziam porque estavam con¬vencidos de que a autoridade eclesiástica residia nos bispos, e não no papa. Mas ambas as posições convinham para a coroa, que não vacilou em animar os sentimentos galicanos, nem em opor-se ao ultramontanismo, às vezes, a força.
Em outras partes da Europa católica, houve movimentos parecidos com o galicanismo. Destes, o mais importante foi o "febronianismo", que se baseava nas idéias expostas por Justino Febrônio em sua obra “O estado da igreja e o poder legítimo do pontífice romano”. Este livro, publicado em 1673, deu nova vida às antigas idéias conciliaristas. Segundo Febrônio, a igreja é a comunidade dos fiéis, e a eles corresponde o poder em última instância. Mas os bispos, como representantes dos fiéis, são os que foram chamados para governar a igreja. Logo, um concílio universal de bispos tem maior autoridade do que o papa, que, em todo caso, não pode interferir nos assuntos de outras igrejas, a não ser na cidade de Roma. A idéia da jurisdição universal do papa, baseia-se em falsas decretais, um documento espúrio que não merece crédito algum.
Clemente XIII condenou o escrito de Febrônio logo que publicado, mas, apesar disso, as idéias que nele se expressavam, rapidamente ganharam popularidade. Muitos viam no febronianismo uma possibilidade de voltar a reunir católicos e protestantes, à base de um concílio universal que não estivesse domi¬nado pelos elementos papistas. Outros o apoiavam e o difundiam porque era compatível com o crescente sentimento nacionalista e negava ao papado jurisdição sobre os diversos reinos independentes. Na Alemanha, não faltaram opulentos bispos que eram, ao mesmo tempo, senhores seculares de suas dioceses e para quem o febronismo era um modo de evitar que se lhes impusessem reformas decretadas em Trento.
Na corte de Viena, o febronianismo tomou um caráter particular. Ali, o imperador José II utilizou esta doutrina para apoiar um plano de governo que fazia da igreja instrumento seu. José II era um dos príncipes ilustres que apareceram no século XVIII e que se lançaram num programa de reformas nos campos da economia, política e educação. Para levar a cabo seus projetos, este imperador necessitava da igreja, mas não de uma igreja dominada pelo espírito tridentino, que lhe parecia obscurantista e intolerante. Ao contrário, o Imperador desejava poder contar com uma igreja culta. Por isso, encarregou-se da educação do clero, aboliu muitos mosteiros que lhe pareciam instrumentos papais e com os fundos assim obtidos, fundou novas igrejas e fez com que as paróquias rurais tivessem ministros aptos.
Outros governantes mostravam-se inclinados a seguir o exemplo do imperador José. Por isso, a igreja romana que havia condenado o febronianismo em 1764, condenou o josefismo em 1794. Não foram tais condenações, e sim a Revolução Francesa, de que nos ocuparemos mais tarde, que pôs fim ao galicanismo e a outros movimentos afins.
Entretanto, o poder papal havia sofrido outro rude golpe na dissolução da ordem dos jesuítas. Essa ordem, fundada precisamente com o propósito que fora, como um exército nas mãos do papado, não era bem vista pelos soberanos absolutistas que governavam durante boa parte do século XVIIl.
Já vimos como foram os jesuítas os que incitaram vários príncipes católicos alemães a lançarem-se no curso que, por fim, levou à Guerra dos Trinta Anos. O desastre causado por esta guerra, o espírito indiferentista em matéria religiosa que ia se posicionando na Europa, e os interesses dos reis, conspiraram para pôr fim à Sociedade de Jesus. Em particular, esta ordem era mal vista pela casa de Bourbon, pois, repetidamente, havia dado mostras de favorecer a sua rival, a Casa de Áustria. Portanto, o sol dos Bourbons foi chegando ao seu zênite e o da Áustria ao seu ocaso. A situação dos jesuítas foi ficando cada vez mais precária.
Em 1758, aconteceu um atentado contra José l, rei de Portugal, e acusaram os jesuítas de estarem envolvidos na conspiração. O resultado foi que, no ano seguinte, a Sociedade de Jesus foi expulsa de Portugal e suas colónias, enquanto que a coroa se apoderava de seus abundantes bens. Na França, devido em parte à inimizade da favorita do Rei, Madame Pompadour, a Sociedade de Jesus foi extinta em 1764. Três anos mais tarde os jesuítas foram expulsos da Espanha e suas colónias pelo ilustre rei Carlos III. Já temos narrado as consequências que isto acarretou para a igreja na América. Nesse mesmo ano de 1767, Fernando IV, de Nápoles, filho de Carlos III, seguiu o exemplo de seu pai.
Tudo isto levou a um esforço conjunto por parte dos Bourbons para desfazer-se dos jesuítas, não só em seus domínios co¬mo em todo o mundo. Em princípios de 1769, os embaixadores bourbônicos em Roma apresentaram ao papa Clemente III uma resolução conjunta na qual requeriam a dissolução da Sociedade de Jesus. Mas o Papa sofreu uma hemorragia cerebral, (alguns dizem que em consequência do desgosto causado por este docu¬mento) e morreu poucos dias após.
O novo papa, Clemente XIV, tratou de resistir à pressão dos Bourbons. Mas, no final, cedeu e, em 1773, a Sociedade de Jesus foi dissolvida por ordem do Papa. Exceto na Prússia e na Rússia Branca, cujos soberanos tinham suas razões para não acatarem o mandato papal, a Sociedade de Jesus deixou de existir, e o papado perdeu, assim, seu instrumento mais forte e fiel. O galicanismo, o febronianismo, o josefismo e o desaparecimento dos jesuítas mostraram que durante esta época de dogmas e de dúvidas, ao mesmo tempo em que os papas insistiam, cada vez mais, em sua jurisdição universal, na realidade iam perdendo seu poder e autoridade.

0 Jansenismo
O Concílio de Trento havia condenado categoricamente as proposições de Lutero e Calvino, acerca da graça e da predestinação. Mas havia quem temesse que uma interpretação extrema das decisões desse concílio pudesse vir a contradizer os ensinos do grande mestre Santo Agostinho, acerca desses temas. Portanto, desde o fim do século XVI, particularmente nas universidades de Salamanca e Louvain, suscitaram-se disputas sobre a graça, predestinação e o livre arbítrio.
Em Salamanca, a discussão logo tornou-se um conflito entre dominicanos e jesuítas. O jesuíta Luis de Molina havia publicado em Lisboa um livro: “Da concordância entre o livre arbítrio e os dons da graça”. Desse modo, a aceitação da graça não se deve a predestinação, senão ao contrário. Domingos Bânez, professor de Salamanca e um dos mais respeitados teólogos da época, declarou que o que Molina propunha era contrário aos ensinos de Agostinho, e que, portanto, devia ser condenado.
Prontamente, os jesuítas se reuniram em redor das teses de Molina, e os dominicanos em torno das de Bânez. Em Valladolid, onde ambas as ordens tinham importantes centros, houve dois debates que não conseguiram grande coisa — exceto que, no segundo, por pouco não ocorreu um motim. Cada grupo acusou ao outro ante a Inquisição Espanhola e esta, julgando-se incapaz de pronunciar uma decisão, encaminhou a questão a Roma. O Papa, no tempo Clemente VIII, tratou de resolver a questão proibindo toda discussão do assunto e pedindo o conselho das principais faculdades de teologia. Os dominicanos insistiam em que as teses de Molina contradiziam tanto a Santo Agostinho, como a São Tomé e, portanto, deviam ser condenadas como heréticas, enquanto que a deles simplesmente repetiam o que os grandes mestres da igreja haviam dito e, portanto, não deviam nem podiam ser proibidas. O Papa, convencido de que os dominicanos tinham razão, dispunha-se a condenar Molina, quando os jesuítas e o Rei da Espanha lhe aconselharam maior cautela.
Clemente presidiu, então, outra série de discussões que lhe deram maior tempo para o assunto. Conscientes de que o Papa inclinava-se para os dominicanos, os jesuítas da Universidadede Alcalá começaram a semear dúvidas acerca da autoridade do papado. Na morte de Clemente, a discussão continuava. Depois do brevíssimo pontificado de Leão X l, o novo papa PauIo V decidiu que o melhor era evitar qualquer condenação, declarando que nem os dominica¬nos nem os jesuítas estavam ensinando falsas doutrinas. Além disso, proibiu-os de continuarem se acusando mutuamente de heresia (porque os jesuftas diziam que os dominicanos eram calvinistas e os dominicanos acusavam os jesuítas de serem pelagianos). Contudo, as tensões entre jesuítas e dominicanos, que esta controvér¬sia acalentou, continuaram por longo tempo.
As controvérsias na Universidade de Louvam tiveram maiores repercussões. Ali, o teólogo Miguel Bayo propôs teses muito semelhantes às de Agostinho. Segundo ele, o pecado humano é tal que nossa própria natureza ficou corrompida, senão totalmente, ao menos o suficiente para que não possamos, por nós mesmos, voltarmos para Deus. O arbítrio do ser humano pecador não pode produzir senão o mal, portanto, é incapaz de con¬verter-se a Deus, sem que antes a graça divina o traga para o bem. Tais opiniões, que sem dúvida se encontram nas obras de Santo Agostinho, aproximavam-se demasiadamente das de Calvino para que pudessem passar inadvertidamente. Em 1567, Pio V condenou setenta e nove proposições tomadas das obras de Bayo. Este as repudiou e aceitou o decreto papal, mas continuou ensinando uma versão ligeiramente distinta de tais teses condenadas. Assim, doze anos mais tarde, Gregório XIII voltou a condenar seus ensinos. Apesar da oposição papal, a faculdade teológica de Louvain continuava apoiando a Bayo, a quem fez chanceler da universidade. Quando o jesuíta Lesio atacou as teses de Bayo, a universidade respondeu declarando que Lesio era pelagiano. Os jesuítas responderam chamando a Bayo e aos seus de calvinistas. Como no caso da Espanha, por último as autoridades trataram de acalmar o conflito simplesmente ordenando que cada grupo deixasse de atacar o outro. Mas tal solução não podia perdurar. As opiniões de Bayo, apesar de já terem sido condenadas por Roma em 1567 e 1579, continuavam circulando em Louvain, e não faltava quem as ensinasse desde a cátedra, ainda que de modo sutil. Assim, a controvérsia estava sempre pronta a explodir de novo.
Essa explosão ocorreu várias décadas mais tarde, em torno de Cornélio Jansen, bispo de Ypres, na Bélgica e, antes, professor de Louvain. Em 1640, publicou-se, postumamente, a volumosa obra de Jansenio, “Agostinho”, que causou grande agitação. A obra em si não pretendia ser mais que um estudo e exposição dos ensinamentos do grande bispo de Hipona. Mas, o que Jansen propunha com ela, era mostrar que Agostinho havia ensinado a primazia e a necessidade da graça de um modo que não con¬cordava com as doutrinas comumente aceitas pela igreja — propostas principalmente pelos jesuítas. Esta era uma tarefa a que Jansen havia se consagrado secretamente, anos antes, para a qual se propunha a ler e reler todas as obras de Agostinho, tantas vezes quantas fossem necessárias. Portanto, seu livro apresentava argumentos contundentes com os quais confirmavam sua interpretação de Agostinho e não podia, senão, causar sérias controvérsias.
De fato, “Agostinho”, de Jansen, era parte de todo um programa de reformas da igreja. Vários anos antes, Jansen tinha discutido este programa com seu amigo João Ambrósio Duvergier, mais conhecido como "São Cirano", por ser abade do mosteiro deste nome. Ambos haviam chegado à conclusão de que a igreja necessitava de uma reforma fundamental e que, parte dessa reforma, devia consistir em uma redescoberta das doutrinas de Santo Agostinho acerca da graça e da predestinação.
De acordo com o ponto de vista de Jansen e São Cirano, durante a Idade Média, a igreja havia perdido de vista a mensagem da graça imerecida de Deus e, em data mais recente, em meio de sua polêmica contra o protestantismo, simplesmente havia insistido em seus erros medievais. Estes dois amigos juramentaram-se para levar a igreja a uma redescoberta da primazia da graça e do sentido do evangelho, que, quando se lê, vê-se à luz dessa primazia. Não eram, nem queriam ser protestantes. Mas estavam conscientes de que seu programa de reforma era tal que, se não se cuidassem, os condenariam como protestantes. Por isso, durante longo tempo mantiveram uma correspondência na qual ocultavam seus propósitos, mediante um código secreto. Assim, por exemplo, o cardeal Richelieu era "Purpurato" e os protestantes eram chamados de "pepinos".
Durante esses anos de trabalho em secreto, São Cirano ocupou-se em estabelecer os contatos que lhe abriram caminho para a proposta reforma. Jansen se dedicou a desenvolver as bases teológicas do movimento. Por isso, enquanto Jansen lia e relia as obras de Agostinho dezenas de vezes, São Cirano ia se abrindo em direção aos círculos mais influentes da França.
O principal ponto de apoio de São Cirano foi a abadia de Port Royal, nos arredores de Paris. Essa abadia, debaixo da direção da Madre Angélica, havia conquistado o respeito das pes¬soas mais religiosas da capital francesa. A própria Madre Angélica tinha sido colocada no convento com a idade de oito anos. Aos onze, no mesmo dia em que recebeu a primeira comunhão, foi feita abadesa. Essa nomeação, feita à base da posição social da família de Angélica, nos dá uma idéia do nível a que havia descido a vida monástica em Port Royal e outras casas semelhantes. Mas, seis anos mais tarde, ao escutar um sermão de um pregador que por lá passou, Madre Angélica decidiu reformar seus costumes e os do convento cujo cuidado lhe haviam designado. Começou levando uma vida distinta, à qual, prontamen¬te, se juntaram outras monjas. Por fim, Port Royal começou a ter uma fama como centro de piedade e devoção, ao qual se dirigiam muitas pessoas de inquietudes religiosas.
Uns anos antes da publicação de “Agostinho”, o abade São Cirano havia feito seus primeiros contatos com Port Royal e com Antoine Arnauld, irmão da abadesa. Pouco a pouco, foi ganhando ascendência sobre o mosteiro e sobre o círculo religioso que se havia formado em redor dele mesmo, ao qual pertenciam várias famílias de alta estirpe.
A fama de São Cirano cresceu deste então junto a de Port Royal. Os mesmos elementos de inquietudes religiosas que iam ao convento tomaram o ardente abade por conselheiro e diretor espiritual. Sob sua inspiração, várias pessoas abandonaram sua antiga vida e foram viver como "ermitãos", nos arredores de Paris. Além disso, São Cirano e seus seguidores fundaram toda uma série de "pequenas escolas", cujo propósito fundamental era formar o caráter dos discípulos, o que contrastava com a educação de tipo autoritário das escolas da época — em particular dos jesuítas, que logo tiveram razões para se oporem a São Cirano e aos seus.
Entretanto, o fato de que São Cirano ganhava vários adeptos, lhe criava também sérias inimizades. Os jesuítas viam em suas escolas uma crítica e uma ameaça à deles. Além disso, era a época de máximo poderio do cardeal Richelieu, para quem todo excesso de zelo religioso era uma ameaça à integridade do Estado. Por razões semelhantes às que o levaram a opor-se aos huguenotes, Richelieu via com receio o crescente círculo que se formava em torno de São Cirano. Por algum tempo, tratou de ganhar o abade. Este não dava mostras de querer se aliar ao primeiro ministro, porém, pelo contrário, atreveu-se a criticá-lo. Por fim, Richelieu ordenou que São Cirano fosse detido e levado ao castelo de Vincennes, onde passou os cinco anos seguintes.
Uma semana antes de ser detido São Cirano, Jansen havia morrido. Portanto, sua projetada reforma parecia haver-se abortado. Na prisão, ainda que lhe tratassem bem e lhe permitissem continuar escrevendo a seus amigos e seguidores, São Cirano chegou a duvidar da causa a que havia consagrado vários anos.
Assim estavam as coisas, quando se publicou “Agostinho”, de Jansen, dois anos depois da morte de seu autor. A obra de Jansen era um ataque às doutrinas sobre a graça e a predestinação, que já mencionamos, quando nos referimos a Luís de Molina. Frente a tais opiniões sustentadas pelos demais jesuítas, Jansen apela à autoridade de Santo Agostinho. Segundo esse santo ve¬nerado, o ser humano, depois da queda, não tem liberdade para não pecar. Como foi criado, originalmente, a possuía. Porém, a queda de tal modo corrompeu sua liberdade que, agora, em seu estado natural, somente é livre para pecar. O humano pecador não tem forças nem vontade para olhar para Deus e, portanto, ama a si mesmo, ama as criaturas com o amor que devia reservar-se unicamente ao Criador. O livre arbítrio do pecador é, na realidade, escravo do pecado e necessita ser libertado pela graça divina. Sem essa graça, nada de bom podemos fazer. Essa graça é, como seu nome o diz, absolutamente gratuita. Nada podemos fazer para merecê-la (pois ao contrário, estaríamos dizendo que nosso arbítrio pecador pode fazer o bem). Como graça imerecida, é dom de Deus. E é soberana e irresistível, não porque force a vontade, mas porque trabalha dentro da vontade de tal modo que a leva a desejar o bem. Em consequência, a salvação depen¬de de predestinação, pois Deus predestinou a uns para a salvação, enquanto que os outros continuam sendo parte dessa "massa de condenação" que é a humanidade depois do pecado. A salvação e a condenação não dependem, em última instância, da vontade humana, mas da predestinação divina que faz os eleitos receberem o dom da graça, e os réprobos, carecendo desse dom, seguem como parte da "massa de condenação".
Sem dúvida, tudo isto havia sido ensinado por Santo Agostinho, e o livro de Jansen oferecia abundantes provas. Mas também era certo que o que Jansen atribuía ao venerado bispo do século quarto se parecia muito com o que Calvino e seus seguidores haviam proposto em data muito mais recente. Em sua obra, Jansen tratava de mostrar que suas doutrinas eram distintas das de Calvino. Mas seus argumentos não eram suficientes e, em todo caso, baseavam-se em distinções bastante sutis. Uma vez mais, os jesuítas foram os mais vigorosos defensores da ortodoxia tridentina na frente das supostas inovações dos que insis¬tiam na primazia da graça. Atrás de uma longa série de gestões, conseguiram que várias das teses de Jansen fossem condenadas pelo papa Urbano VIII em 1643.
Enquanto tudo isto acontecia, o abade de São Cirano continuava prisioneiro. Após o momento de fraqueza inicial, quando duvidou da causa a que se havia consagrado, tomou a pena e, mediante uma abundante correspondência, conseguiu manter vivo o movimento que se havia formado ao redor de sua pessoa. À sua indubitável sinceridade e habilidade se somaram agora a auréola de mártir que muitos lhe atribuíam.
Em 1643, no mesmo ano em que Urbano condenou as teses de Jansen, Mazarino, que tinha sucedido ao falecido Richelieu, colocou em liberdade São Cirano. Seus partidários o receberam com mostras de extraordinária alegria, dando graças a Deus por sua libertação. Por sua vez, o abade dedicou-se a continuar sua obra e a escrever contra o protestantismo, quem sabe para acalmar a inquietude de quem visse semelhanças entre as doutrinas de Jansen e de Calvino.
Ainda que este círculo, que se formou ao redor de Port Royal e do abade de São Cirano, fosse partidário das teses de Jansen, durante os anos transcorridos desde a publicação de “Agostinho”, o centro da controvérsia havia mudado. A princípio, tratava-se das questões acerca da relação entre a graça e o livre arbítrio, em consequência da doutrina da predestinação. O "jansenismo" parisiense, apesar de sustentar a posição doutrinária de Jansen, havia se tornado um movimento mais prático. Tratava-se, principalmente, de um centro de resistência contra a lassidão que parecia reinar na vida moral e devota. Em particular, os jansenistas de Port Royal opunham-se ao "probabilismo" proposto por alguns jesuítas.
Segundo o probabilismo, em um caso onde haviam várias alternativas de ação, todas elas eram aceitáveis sempre que tivessem alguma possibilidade de serem corretas, por mais remota que essa possibilidade parecesse. O probabilismo permitia aos confessores as suas penitências ainda que não estivessem de acordo com suas ações. Ao mesmo tempo, era muito difícil manter qualquer rigor moral, pois sempre era possível achar razões pelas quais as ações podiam justificar-se. Frente a este, os jansenistas do círculo de São Cirano opunham um firme sentido da disciplina. É por isso que alguém chegou a dizer que as monjas de Port Royal eram "puras como anjos e orgulhosas como demónios".
O abade de São Cirano morreu pouco depois de sua libertação. Mas deixou atrás de si, como chefe do partido jansenista, Antoine Arnauld, irmão da Madre Angélica. Era a época em que as autoridades, tanto eclesiásticas, como reais, tomaram medidas contra o jansenismo. Arnauld defendeu-se mais como advogado do que teólogo, e sua defesa foi tal que se chegou a chamá-lo de "O grande Arnauld". Porém, o campeão do jansenis¬mo, nesta segunda época, foi o filósofo Blaise Pascal. Pascal havia dado mostras de gênio desde muito jovem, particularmente nos campos da matemática e da física. Aos trinta e um anos de idade, oito antes de sua morte, converteu-se ao jansenismo. Para ele aquilo foi uma profunda experiência religiosa e basta ler seus escritos a partir dessa data para perceber que se tratava de um homem de profunda sensibilidade, para quem a questão de sua relação com Deus era de primeira importância. Quando a faculdade teológica da Sorbona condenou Arnauld, Pascal publicou anonimamente a primeira de suas Epístolas Provinciais, nas quais atacava os jesuítas e os demais adversários do jansenismo, com fino humor e profunda perspicácia teológica. Entre 1656 e 1657, apareceram dezoito dessas "epístolas", supostamente dirigidas aos jesuítas de Paris por um habitante das províncias. Seu êxito foi completo. Fala-se que até Mazarino, mesmo sendo inimigo dos jansenistas, não pôde conter o riso ao ler a primeira delas. Por todas as partes as pessoas riam dos jesuítas e seu partido. As múltiplas tentativas de refutar as Epístolas provinciais eram tão inferiores a elas, que se tornavam motivo de zombaria e desprezo.
As Epístolas provinciais foram acrescentadas ao índice de livros proibidos pela igreja romana. Pascal, após publicar as primeiras dezoito, escreveu outras que ficaram inéditas. Mas a opinião pública se inclinava de tal modo para os jansenistas que as autoridades tiveram que recuar em seu empenho de destrui-los. A pressão que fora exercida algum tempo sobre Port Royal, amenizou. As "pequenas escolas" dos jansenistas, que haviam sido fechadas pelo governo, voltaram a abrir suas portas. O Jansenismo parecia estar na moda entre os aristocratas, muitos dos quais se declaravam seus partidários.
Contudo, os elementos de oposição também eram fortes. O Rei, na ocasião Luís XIV, estava disposto a seguir o conselho que Mazarino lhe havia dado antes de morrer, no sentido de que não tolerasse esse movimento que ameaçava voltar como nova seita. Logo começou a reação anti-jansenista. A assembléia do clero condenou o movimento. Tomou medidas para assegu¬rar-se de que todos os clérigos afirmavam essa condenação. As monjas de Port Royal foram dispersadas. Nem as monjas, nem alguns dos bispos jansenistas estavam dispostos a retratar-se. Apesar de seu galicanismo, Luís XIV solicitou a ajuda do papa Alexandre VII, que ordenou a todos os membros do clero que repudiassem o jansenismo.
Os jansenistas debatiam entre si se deviam resistir, ou submeter-se, quando Alexandre morreu. Seu sucessor, Clemente IX, era pessoa de espírito conciliador e preferiu seguir a rota das discussões e negociações, à da condenação. Assim, chegou-se a um acordo precário. As monjas de Port Royal puderam regressar a seu convento. Isto aconteceu em 1669, e durante todo o final desse século, o jansenismo continou existindo dentro do seio do catolicismo romano, fazendo-se forte nele. Antoine Arnauld e Port Royal voltaram a ocupar um lugar proeminente na vida religiosa da França. Inocêncio XI, eleito papa em 1676, manifestou-se contra as teses probabilistas dos jesuítas, que foram condenadas. A Sociedade de Jesus foi posta nas mãos de pessoas de espírito mais rigoroso. E até se comentou de tornar cardeal a Arnauld.
Próximo ao final do século, a situação começou a mudar. As monjas de Port Royal foram proibidas de aceitar noviças, com o que estaria o convento condenado a morrer. Pouco deois, Arnauld acreditou estar em perigo e partiu para os Países Baixos, onde morreu em 1694. Seus sucessores, como dirigentes do movimento, logo se viram envolvidos em amargas controvérsias com alguns dos mais destacados teólogos da época. Luís XIV, tornava-se mais intolerante com o correr dos anos, vol¬tando a tomar medidas contra os jansenistas e conseguindo que o papa Clemente XI os condenasse.
O partido anti-jansenista voltou sua fúria sobre as monjas de Port Royal. Nesse convento que havia se tornado símbolo do movimento, não ficaram mais que vinte e duas monjas, pois sendo-lhes proibido receber noviças, as mais velhas tinham mor¬rido. Quando se lhes ordenou que declarasse sua obediência ao decreto papal firmado num documento contra o jansenismo, o fizeram com reservas, o que constou no próprio documento. Por fim, no final de 1709, a polícia apoderou-se do convento e dispersou as monjas anciãs, levando-as à força a diversos conventos. No ano seguinte, por ordem real, o mesmo convento foi destruído. Mas as pessoas seguiam em peregrinações ao cemitério e o Rei ordenou que também o campo santo fosse arrasado. Segundo contam os pardidários do jansenismo, enquan¬to os coveiros desenterravam os corpos, os cachorros brigavam pelos restos que ainda não se tinham corrompido de todo.
A tudo isto se somou o papa Clemente XI, que, em 1713, mediante a bula Unigénitas, condenou categoricamente o janse¬nismo e seus chefes. Ao que parece, havia-se dado o golpe de morte ao movimento.
Mas o jansenismo continuou existindo e até floresceu. Não se tratava agora, como no princípio, de uma doutrina acerca da graça. Tampouco era, como nos melhores tempos de Port Royal, um chamado à disciplina moral e religiosa. Era bem mais um partido político que começou a formar alianças com o galicanismo. Luís XIV morreu em 1715 e, durante o reinado seguinte, foram se unindo ao partido jansenista diversos elementos que pouco tinham a ver com as doutrinas originais. Alguns membros do baixo clero se fizeram jansenistas como um modo de protestar contra a opulência e a tirania de seus superiores. A eles se associaram aqueles que se opunham à autoridade romana e viam na condenação do jansenismo uma violação da "antigas liberdades da igreja galicana". Pouco a pouco, o movimento foi atraindo a outros que, por diversas razões, opunham-se à religião estabelecida. Ao mesmo tempo, apareceu dentro do movimento uma ala que empenhava-se para recuperar o espírito perdido. Por fim, e ainda que condenado repetidamente, o movimento desapareceu, não por causa de tais condenações, mas por sua própria desintegração interna.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que Deus continue abençoando seu trabalho e nos edificando com seus post Fica Na Paz!!!!
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Quem sou eu

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Sou pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, mestrando em Divindade (Magister Divinity), pelo CPAJ (Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper). Sou também professor de História da Igreja, de Introdução Bíblica, e Cartas Gerais, na Escola Teológica Rev. Celso Lopes, em Maceió AL. Além disso, sou coronel-aviador da Força Aérea Brasileira, já reformado.

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