Esta página tem por finalidade colocar à disposição dos meus alunos da Escola Teológica Rev. Celso Lopes o material referente às aulas da matéria título do blog.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Aula 7 - A ortodoxia reformada


“A eleição é o propósito imutável de Deus, mediante o qual, antes da fundação do mundo e por pura graça, escolheu dentre toda a raça humana... a certo número de pessoas a serem redimidas em Cristo”. Sínodo de Dordrecht

Durante o século dezessete, a tradição reformada estabeleceu o que a partir de então seria sua ortodoxia. Isto se deu em duas assembléias solenes, cujos pronunciamentos foram vistos como a mais fiel expressão do calvinismo. Essas duas reuniões foram: o Sínodo de Dordrecht e a Assembleia de Westminster.

A Controvérsia Arminiana e o Sínodo de Dordrecht
Jacob Armínio era um distinto pastor e professor holandês, cuja formação teológica havia sido profundamente calvinista. De fato, boa parte de seus estudos ocorreram em Genebra, sob a direção de Teodoro de Beza, o sucessor de Calvino naquela cidade. Voltando à Holanda, ocupou um importante púlpito em Amsterdam e logo sua fama se tornou grande.
Devido a essa fama e a seu prestígio como estudioso da Bíblia e da teologia, os dirigentes da igreja de Amsterdam lhe pediram que refutasse as opiniões do teólogo Dirck Koornhert, que havia atacado algumas das doutrinas calvinistas, particularmente, no que se referia à predestinação. Com o propósito de refutar a Koornhert, Armínio estudou seus escritos e dedicou-se a compará-los com as Escrituras, com a teologia dos primeiros séculos da igreja e com vários dos principais teólogos protestantes.
Por fim, depois de profundas lutas de consciência, chegou à conclusão de que Koornhert tinha razão. Posto que em 1603 Armínio tornou-se professor de teologia da Universida¬de de Leyden, suas opiniões foram publicamente reveladas. Um colega da mesma universidade, Francisco Gomaro, era partidário extremista da predestinação e, portanto, o conflito era inevitável. Foi assim que Jacob Armínio, calvinista de boa qualidade, deu nome à doutrina que, a partir daí, seria vista como a antítese do calvinismo, o arminianismo.
O principal ponto de desacordo entre Armínio e Gomaro não era se havia ou não predestinação. Ambos concordavam que as Escrituras falam de "predestinação". O que se debatia era mais a base dessa predestinação. Segundo Armínio, Deus predestinou aos eleitos porque sabia, de antemão, que teriam fé em Jesus Cristo. Segundo Gomaro, Deus predestinou a alguns a terem essa fé. Antes da criação do mundo, a vontade soberana de Deus determinou quem se salvaria e quem não. Armínio, por sua vez, deduzia que o grande decreto da predestinação era a determinação que Jesus Cristo seria o mediador entre Deus e os seres humanos. Esse era um decreto soberano, que não dependia da resposta humana. O decreto referente ao destino de cada indivíduo baseava-se não na vontade soberana de Deus, mas em seu conhecimento, o qual seria a resposta de cada pessoa ao oferecimento da salvação em Jesus Cristo.
Em quase tudo mais, Armínio continuava calvinista. Sua doutrina da igreja e dos sacramentos, por exemplo, seguia as linhas gerais de Calvino. Portanto, ainda que, por fim, foram os opositores de Armínio os que tomaram para si o nome de "calvinistas", o fato é que toda a controvérsia aconteceu entre os seguidores de Calvino.
Armínio morreu em 1609, mas o conflito não terminou com sua morte. Seu sucessor na cátedra de Leyden sustentava as mesmas opiniões e continuou a controvérsia com Gomaro.
Às questões teológicas se somaram os interesses políticos e económicos. Todavia, debatia-se entre os holandeses qual deveria ser sua relação com a Espanha. A classe mercantil, que constituía uma verdadeira oligarquia, tinha interesse em manter boas relações com a Espanha, a qual contribuía com o comércio.
Frente a isso, o clero calvinista sustentava que tais relações corromperiam a pureza doutrinária da igreja holandesa. Os que não participavam da prosperidade trazida pelo comércio eram, por assim dizer, as classes médias e baixas, embuídas de patriotismo, de calvinismo e de ressentimento contra os mercadores e que opunham-se a tais relacionamentos. Logo, a oligarquia fixou-se no grupo dos arminianos, e os seus opositores adotaram as teses de Gomaro.
Em 1610, o partido arminiano, produziu um documento de protesto, o Remonstrantia, em virtude do qual, a partir de então, deu-se-lhes o nome de "remonstrantes". Esse docu¬mento incluía cinco artigos que tratavam sobre as principais questões em disputa.
O primeiro artigo define a predestinação em termos diferentes, pois declara que Deus determinou, antes da fundação do mundo, que os que se salvariam seriam os que cressem em Cristo. Não está claro se isso quer dizer, como havia ensinado Armínio, que Deus sabia quem haveria de crer e predestinou essas pessoas, ou se queria dizer, simplesmente, que Deus determinou a quem quer que cresse, que seria salvo (o que depois se chamou "o decreto aberto da predestinação"). Em todo caso, o parágrafo da Remonstrantia declara que isto é tudo o que se requer para a salvação, que "não é necessário, nem proveitoso elevar mais alto, nem penetrar mais profundamente". Portanto, a especulação acerca da causa do decreto da predestinação deve ser refutada.
O segundo artigo afirma que Jesus Cristo morreu por todos os seres humanos, mesmo que só os crentes recebam os benefícios de sua paixão.
O terceiro trata de rejeitar a acusação do pelagianismo de que os gomaristas faziam objeção aos arminianos. — O aluno recordará que o pelagianismo foi a doutrina a que se opôs Santo Agostinho, afirmando que o ser humano era capaz de fazer o bem por suas próprias forças. — Por isso declara que o ser humano nada de bom pode fazer por suas próprias forças e que requer a graça de Deus para poder fazer o bem.
Entretanto o quarto artigo rebate a conclusão que tanto Agostinho como Calvino e Gomaro tiravam dessa doutrina, isto é, que a graça é irresistível. "No que se refere ao modo de operação desta graça, não é irresistível, posto que está escrito que muitos resistiriam ao Espírito Santo".
Por último, o quinto artigo trata a respeito dos que creram em Jesus Cristo, se podem perder a graça ou não. Sobre isso, os gomaristas declaravam que a força da predestinação é tal que, os que foram predestinados a crer não podem perder a graça. A resposta dos arminianos neste ponto não é categórica, mas dizem, simplesmente, que é necessário que se lhes dêem melhores provas das Escrituras, antes que estejam dispostos a ensinar uma coisa ou outra.
Uns poucos anos mais tarde, as circunstâncias políticas trabalharam drasticamente entre os arminianos. O príncipe Maurício de Nassau que, durante algum tempo não havia interferi¬do na disputa, tornou o partido dos calvinistas estritos. Johann van Oldenbarnevelt, o Barnevelt, que tinha dirigido o país nas negociações de uma trégua com a Espanha, e era partidário dos arminianos, foi encarcerado. Seu amigo, Hugo Grocio, um dos fundadores do direito internacional moderno, também foi aprisionado. Como parte dessa reação contra o partido mercantilista e contra o arminianismo, os estados gerais holandeses convocaram uma grande assembléia eclesiástica.
Essa assembléia, que se conhece como "Sínodo de Dordrecht", reuniu-se desde novembro de 1618 até maio de 1619. O propósito dos estados gerais ao convocá-lo foi conseguir o apoio não somente dos calvinistas no país, mas também dos do resto da Europa. Por isso estenderam convites a outras igrejas reformadas, e um total de vinte e sete delegados apresentaram-se, desde a Grã-Bretanha, Suíça e Alemanha (os franceses não puderam assistir porque Luís XIII os proibiu). Os holandeses eram quase setenta, dos quais aproximadamente a metade eram ministros e professores de teologia, a quarta parte anciãos leigos e o resto membros dos Estados Gerais.
As primeiras sessões do Sínodo trataram de diversos assuntos administrativos. Decretaram que se produziria uma nova tradução da Bíblia em holandês. Mas o propósito principal da Assembléia era condenar o arminianismo para, desse modo, conseguir o apoio do resto das igrejas reformadas nas brigas internas que dividiam a Holanda. Portanto, os decretos do Sínodo de Dordrecht, no que se refere a teologia, eram dirigidos contra os arminianos. Ainda que a assembléia não tenha aceito as teses mais extremas de Gomaro (que era um dos seus membros), concordou com ele na necessidade de condenar o arminianismo.
Os Cânones do Sínodo de Dordrecht promulgaram cinco doutrinas contra os arminianos e, a partir daí, essas doutrinas se fizeram parte fundamental do calvinismo ortodoxo.
A primeira dessas doutrinas é a da eleição incondicional. Isso queria dizer que a eleição dos predestinados não se basea¬va no conhecimento que Deus tem do modo pelo qual cada um responderá ao oferecimento da salvação, senão unicamente no inescrutável beneplácito divino. O segundo dos princípios de Dordrecht afirma a limitada expiação. Os arminianos afirmavam que Jesus Cristo havia morrido por todo o gênero humano. Frente a eles, o Sínodo de Dordrecht declarou: ainda que o sacrifício de Cristo seja suficiente para toda a humanidade, Jesus Cristo morreu para salvar unicamente os eleitos.
Em terceiro lugar, Dordrecht ainda afirmou que, embora reste no ser humano caído certo vestígio de luz natural, sua natureza foi corrompida de tal modo que essa luz não pode ser usada corretamente. Isto é certo, não somente ao que se refere ao conhecimento de Deus e à conversão, mas também no que se refere às coisas "civis" e "naturais". A quarta doutrina fundamental de Dordrecht é a da graça irresistível, a que já nos referimos anteriormente. Por último, o Sínodo afirmou a perseverança dos santos, ou seja, a doutrina segundo a qual os eleitos têm de perseverar na graça. Embora isto não seja obra sua, senão de Deus, servirá para dar-lhes confiança em sua salvação, firmeza no bem, ainda que vejam o poder do pecado atuando neles.
Imediatamente, depois do Sínodo de Dordrecht, tomaram-se medidas contra os arminianos e seus partidários. Van Oldenbarnevelt foi executado e Hugo Grocio foi condenado à prisão perpétua — pouco depois, graças ao auxílio de sua esposa, conseguiu escapar escondido em um baú, supostamente cheio de livros. Quase uma centena de ministros de conviccões arminianas foi desterrada, e outros tantos foram privados de seus púlpitos. Os que insistiram em continuar pregando foram condenados a prisão perpétua.
Os leigos que assistiam aos cultos arminianos corriam o perigo de terem que pagar pesadas multas. Para assegurar-se de que os mestres não ensinavam doutrinas arminianas, a eles também se exigiu aceitar formalmente as decisões de Dordrecht. Em alguns lugares chegou-se a exigir dos organistas uma decisão semelhante. Conta-se que um deles comentou que não sabia como tocar no órgão os cânones de Dordrecht.
Maurício de Nassau morreu em 1625. A partir daí, acalmaram-se os rigores contra os arminianos, até que se começou a tolerá-los oficialmente em 1631. Logo organizaram suas próprias congregações, que subsistem até hoje. Mas o principal impacto do arminianismo não ocorreu através dessas igrejas holandesas senão por meio de outros grupos e movimentos (particularmente o metodismo), que abraçaram alguns de seus princípios.

A Confissão de Westminster
Ao tratar da Revolução Puritana, narramos os sucessos que levaram à convocação da Assembléia de Westminster e dissemos algo acerca das decisões desse corpo e do seu impacto no curso dos acontecimentos na Grã-Bretanha. Também mencionamos a Confissão de Westminster, produzida por essa assembléia em 1647. Todavia, deixamos toda discussão do conteúdo teológico desse documento para a presente aula, onde o veremos como o segundo exemplo do espírito da ortodoxia calvinista.
A Confissão de Westminster é muito mais longa que os cânones de Dordrecht, pois nela trata-se de muitos temas distintos. O primeiro capítulo aborda a questão da autoridade das Escrituras, que são o "juiz supremo" em toda controvérsia religiosa. Posto que nem toda a Bíblia é igualmente clara, "a regra infalível para a interpretação da Escritura é a Escritura mesmo", o que quer dizer que os textos obscuros devem ser interpretados à luz dos mais claros. Depois de expor a doutrina da Trindade, a Confissão passa a discutir "o decreto eterno de Deus" e começa afirmando que, desde a eternidade, Deus tinha determinado tudo quanto havia de suceder. Parte desse decreto diz que alguns seres humanos e alguns anjos foram predestinados para a vida eterna e outros para a morte eterna. Ainda mais, isto não se baseia de modo algum em que Deus sabia ou previra quem haveria de atuar de uma ou de outra maneira.
Igualmente ao sínodo de Dordrecht, a Confissão de Westminster afirma que parte do resultado do pecado de Adão é: "esta corrupção original, que nos faz incapazes e inaptos e contrários a todo bem, inclinando-nos completamente para todo o mal". Afirma também a doutrina da expiação limitada ao declarar que Cristo salva a todos aqueles cuja redenção obteve. Depois do pecado, o ser humano perdeu toda liberdade de inclinar-se para a salvação e, portanto, este é o resultado do "chamado eficaz" mediante o qual Deus trabalha nos eleitos e "determina suas vontades para o bem". Esses eleitos são justificados quando o Espírito Santo, no momento propício, lhes aplica a obra de Cristo. A isto segue a santificação que, apesar de imperfeita nesta vida, é sem dúvida inevitável, pois a força santificadora do Espírito Santo prevalece nos predestinados. Tais pessoas "não podem cair do estado de graça de modo total nem final, mas, certamente, perseverarão nele e serão eternamente salvas".
Segue-se a isso, uma longa série de capítulos acerca das questões que se debatiam na Inglaterra durante o período da revolução puritana, tais como o modo de guardar o dia do Senhor, se era legítimo prestar juramento, como devia organizar-se a igreja, e outros temas. Porém, o que nos importa aqui é mostrar o acordo entre a Confissão de Westminster e os cânones de Dordrecht, pois estes dois documentos são os pilares da ortodoxia calvinista a partir do século dezessete.
O que antecede basta para mostrar o espírito e o conteúdo da ortodoxia calvinista dos séculos dezessete e dezoito. Di¬zendo ser fiel intérprete de Calvino, centralizava toda sua atenção sobre a doutrina da predestinação e outras questões relacionadas com ela, como o livre arbítrio, a graça irresistível, a depravação total do gênero humano e a perseverança dos santos. Desse modo, fazia da teologia do reformador de Genebra, um sistema rígido que o próprio Calvino, quem sabe, não teria reconhecido. Calvino havia descoberto em sua própria experiência o gozo liberador da justificação pela graça imerecida de Deus. Para ele, a doutrina da predestinação era um modo de expressar esse gozo e esse caráter imerecido da salvação. Mas em mãos de seus seguidores, tornou-se prova da ortodoxia e até do favor divino. Quase poderia se dizer, sem exagerar, que os calvinistas posteriores chegaram a confundir a dúvida acerca da predestinação com o fato de ser condenado.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Aula 6 - A ortodoxia luterana


< Martinho Lutero
A reforma proposta e começada por Lutero era de caráter doutrinário e não meramente prático. Lutero criticava a corrupção que se havia tornado tão comum na vida da igreja. Mas esse não era o tema principal de seu conflito com a Igreja Romana. Esse conflito devia-se a razões teológicas que já vimos. Por isso, Lutero estava convencido de que a reta doutrina era de especial importância para a vida da igreja.
Por outro lado, isso não queria dizer que todos teriam que pensar exatamente como ele. Durante vários anos, seu principal colaborador foi Felipe Melanchthon que discordava dele em muitos pontos. O próprio Lutero gostava de dizer que ele era como o lavrador que cortava as árvores e tirava as grandes pedras, e que Melanchthon vinha depois para arar e semear. De igual modo, ainda que posteriormente se tenha falado muito, e com razão, das diferenças entre Lutero e Calvino, o fato é que, quando o reformador alemão leu a primeira edição da Instituição da religião cristã, comentou muito favoravelmente sobre ela.
Mas nem todos os luteranos tinham tal amplitude mental. Logo alguns deles começaram a insistir em um luteranismo estrito e cada vez mais rígido. No século dezesseis, isto deu lugar ao conflito entre "filipistas" e luteranos estritos e, no dezessete, à "ortodoxia luterana".

Filipistas e luteranos estritos
Depois da morte de Lutero, Melanchthon ocupou seu lugar como o principal intérprete da teologia luterana. Sua obra, Temas teológicos, veio a ser um dos principais textos para o estudo da teologia e foi publicada repetidamente, sempre com novas revisões por parte de seu autor.
Mas havia quem pensasse que Melanchthon não representa¬va fielmente a teologia do falecido Reformador. O ponto fundamental de discrepância, dos quais derivavam os demais, era o espírito humanista do "Mestre Felipe" — como Lutero lhe chamava. Quando o Reformador rompeu com Erasmo e seu humanismo, Melanchthon continuou as relações cordiais com o ilustre erudito. Isso devia-se, em parte, ao espírito agradável do "mestre Felipe". Devia-se também ao fato de que Melanchthon não estava completamente de acordo com o tom radical de Lutero em seus ataques contra a "miserável razão". Por motivos semelhantes, Melanchthon, ao mesmo tempo que afirmava a justificação pela fé, insistia na necessidade das boas obras, ainda que não como meio de salvação, senão como resultado e testemunho dela.
O conflito entre "filipistas" e os luteranos estritos estourou em volta do ínterim de Augsburgo. Como vimos ao tratar sobre a Era dos reformadores, este foi um modo de conseguir a paz, ao menos temporariamente, entre católicos e luteranos. Nenhum dos luteranos acreditava que o ínterim era um grande documento. Mas a pressão imperial era grande e, por fim, os teólogos de Wittenberg, com Melanchthon liderando, consentiram assinar o ínterim de Leipzig, que era uma versão modificada do de Augsburgo.
Os luteranos estritos que haviam se negado a assinar o ínterim mesmo frente a autoridade imperial, acusaram os "filipistas" de Wittenberg de haverem abandonado vários elementos da doutrina luterana. A resposta de Melanchthon estabelecia uma distinção entre os elementos essenciais do evangelho e os periféricos, aos que dava o nome grego de "adiáfora". O essencial não devia e nem podia ser abandonado sob nenhuma circunstância. O que era "adiáfora", sem deixar de ser importante, não era imprescindível. Logo, em uma situação como a que existia, justificava-se abandonar alguns elementos que eram secundários, a fim de salvaguardar a liberdade de continuar pregando e ensinando o essencial do Evangelho. A tudo isso os luteranos estritos, liderados por Matias Flacio, respondiam que, mesmo sendo certo que existam elementos periféricos de importância fundamental, existem também circunstâncias onde se requer uma clara confissão de fé. Nessas ocasiões, certos elementos que poderiam parecer secundários tornaram-se símbolos da mesma fé. Quem os abandona nega-se a confessar sua fé. Quem verdadeiramente quer dar o testemunho claro, que se requer, nega-se a abandonar esses elementos periféricos, temendo que tal abandono seja interpretado como uma capitulação. Ao aceitar o ínterim de Leipzig, os "filipistas", ainda que não tivessem feito outra coisa que ceder no periférico, negaram-se a confessar sua fé.
A este conflito logo se ajuntaram outros. Os luteranos estritos acusavam os filipistas de darem demasiada importância à participação humana na salvação. Melanchthon, que nunca havia estado completamente de acordo com o que Lutero havia dito acerca do "arbítrio escravo", pouco a pouco foi concedendo maior importância ao arbítrio humano e, por fim, chegou a falar de uma colaboração entre o Espírito, a Palavra e a vontade humana. Frente a ele, os luteranos estritos enfatizavam a corrupção da natureza humana como consequência do pecado. Flacio chegou mesmo a dizer que a natureza do ser humano caído é corrupta.
Logo os luteranos estritos começaram a acusar os filipistas de serem na realidade calvinistas e não luteranos. Um deles fez uma comparação entre Lutero e Calvino no que se refere ao sacramento da comunhão. Tratou de provar que muitos dos pretensos luteranos, na realidade eram calvinistas.
Todas estas controvérsias (e outras que não mencionamos, mas de semelhante teor) levaram, por fim, à Fórmula de Concórdia de 1577. Na maior parte das questões debatidas, essa Fórmula tomava uma posição intermediária entre ambos os extremos. Assim, por exemplo, a Fórmula declara que é verdadeiro que haja certos elementos que não são essenciais ao evangelho, mas acrescenta que, em tempos de perseguição, não é lícito sequer abandonar esses elementos periféricos. No que se refe¬re à relação entre a predestinação e o livre arbítrio, a Fórmula adota também uma posição intermediária entre as de Melanchthon e Flacio.
Mas, quanto à comunhão, a Fórmula seguiu o caminho do luteranismo estrito, dando a entender que não há diferença apreciável entre a posição de Zwinglio, que Lutero rebateu em Marburgo, e a de Calvino. O resultado disto foi que, a partir de então, uma das características essenciais do luteranismo foi sua doutrina acerca da presença de Cristo na comunhão, expressa em termos de sua oposição ao calvinismo.

A ortodoxia
Enquanto o período anterior da Fórmula de Concórdia caracterizou-se pelas controvérsias entre os luteranos estritos e os "filipistas", as gerações seguintes se dedicaram a unir intimamente os ensinamentos de Lutero com os de Melanchthon. Esse já era o espírito da Fórmula e de seu principal arquiteto, o teólogo Martin Chemnitz — cuja teologia, ao mesmo tempo que aceitava a maior parte das proposições dos luteranos estritos, seguia uma metodologia semelhante a de Melanchthon. Para Chemnitz, o importante era reconciliar as diversas posições dentro do luteranismo e contornar seus pontos de divergências, tanto com o catolicismo como com outros ramos protestantes.
A teologia que surgiu desse novo espírito chamou-se "escolasticismo protestante" e dominou o pensamento luterano durante o século dezessete e boa parte do dezoito.
A principal característica do escolasticismo protestante foi sua ênfase no pensamento sistemático. Lutero nunca tratou de expor todo um sistema de teologia, nem sequer de desenvolver tal sistema. Melanchthon escreveu uma breve obra sistemática que logo gozou de grande estima. Mas os teólogos da escolástica protestante escreveram grandes obras sistemáticas que tanto por sua extensão como pelo detalhe de suas análises, podiam comparar-se às grandes sínteses da escolástica medieval.
Por exemplo, a principal obra de João Gerhardt compreendia nove grandes volumes que, na edição seguinte, se tornaram vinte e três. Abraham Calov publicou, entre 1655 e 1677, uma teolo¬gia sistemática em doze volumes. Nessas obras, tentava-se tratar, ponto por ponto e ordenadamente, todas as questões teológicas imagináveis.
Outra característica da escolástica protestante, e que a fa¬zia semelhante à medieval, era seu uso de Aristóteles. Lutero havia dito que, para ser teólogo, era necessário desfazer-se de Aristóteles. Mas, pelo fim do século dezesseis, houve um desper¬tar do interesse pela filosofia aristotélica, e logo quase todos os teólogos luteranos estavam empenhados em expor a teologia de Lutero em formas da metafísica aristotélica. Ainda mais, alguns deles faziam uso das obras filosóficas dos jesuítas, que também tinham se dedicado a fazer sua teologia sobre a base de Aristóteles. Portanto, ao mesmo tempo que em conteúdo, a escolástica protestante opunha-se radicalmente ao catolicismo romano, em seu tom de metodologia se parecia muito com a teologia católica da época.
A terceira razão porque a teologia luterana do século dezesseis recebeu o nome de "escolasticismo" é que foi o principal produto das escolas. Não se tratava já, como no século dezesseis, de uma teologia nascida da vida da igreja e dirigida para a pregação e cuidado pastoral, mas de uma teologia nasci¬da nas universidades e dirigida principalmente para outros teólogos.
Ainda que a escolástica protestante tenha caído em desuso em fins do século dezoito, deixou dois legados importantes: sua doutrina da inspiração das Escrituras e seu espírito de rigidez confessional.
Lutero nunca havia tratado, especificamente, sobre a inspiração das Escrituras. Naturalmente, estava convencido de que as Escrituras haviam sido inspiradas por Deus e que, portanto, eram a base de qualquer afirmação teológica. Mas nunca discutiu em que consistia a inspiração. Para ele, o importante não era o texto da Bíblia, mas a ação de Deus da qual esse texto dá testemunho. A Palavra de Deus é Jesus Cristo, a Bíblia é a Palavra de Deus porque nos leva a ele e nos dá testemunho dele. Mas os luteranos da escolástica protestante suscitaram a questão: Em que sentido a Bíblia é inspirada?
A resposta da maioria deles foi que o Espírito Santo não só disse aos autores o que tinham de escrever, mas que também lhes ordenou que o escrevessem. Tal doutrina era importante para rebater o argumento em favor da tradição de alguns católicos, que diziam que os apóstolos comunicaram a seus discípulos algumas coisas por escrito e outras verbalmente. Se os apóstolos deixaram a seus discípulos ensinamentos orais ou não, não importa, pois tais ensinamentos não seriam inspirados. O único inspirado é o que o Espírito disse aos apóstolos e profetas que escreveram.
A outra pergunta que estes teólogos suscitaram com respei¬to à inspiração das Escrituras é: Até que ponto a individualidade de cada autor determinou o que escreveram? A resposta mais comum foi que os autores bíblicos não foram mais do que copistas ou secretários do Espírito Santo. O que escreveram foi, letra por letra, o que o Espírito lhes disse. Mas o Espírito conhecia a individualidade de cada autor e, portanto, ditou a cada um segundo sua própria personalidade e estilo. É por isso que as epístolas de Paulo, por exemplo, são distintas das de João.
Tudo isso levou a uma ênfase na inspiração da Bíblia letra por letra. É interessante notar que, ao mesmo tempo que alguns teólogos afirmavam que a Vulgata (a tradução da Bíblia em Latim) tinha sido inspirada pelo Espírito Santo, havia teólogos luteranos que afirmavam que o Espírito Santo inspirou os rabinos que, durante a Idade Média, associaram as vogais ao texto hebraico (o texto original somente tinha consoantes).
O espírito de rigidez confessional da escolástica protestante pode ser visto na controvérsia que ocorreu em torno da obra de Jorge Calixto.

Jorge Calixto e seu "sincretismo"
Jorge Calixto era um luterano sincero que estava convencido de que, mesmo sendo o luteranismo a melhor interpretação das Escrituras, isso não bastava para declarar que todos os demais eram hereges ou falsos cristãos. As controvérsias da época e, em particular, o modo como os cristãos de diversas confissões se atacavam mutuamente, lhe parecia uma negação do espírito do evangelho. Com efeito, era necessário buscar uma aproximação. Mas, ao mesmo tempo, tal aproximação não devia levar à negação do luteranismo.
Com esse projeto em mente, Calixto estabeleceu uma distinção semelhante a de Melanchton entre o fundamental e o secundário. Tudo o que está nas Escrituras tem sido revelado por Deus, mas nem tudo tem igual importância. O fundamental e absolutamente necessário é o que se refere à salvação. Os demais são também importantes, pois são parte da revelação divina e, portanto, não podemos nos desinteressar deles. Porém, não é o fundamental. Em outras palavras, existe uma diferença entre a heresia e o erro. A heresia consiste em negar parte do que é essencial para a salvação. O erro consiste em negar algum outro aspecto da verdade revelada. Tanto a heresia como o erro são maus e devem ser evitados. Mas unicamente a heresia deve ser obstáculo para que tenhamos comunhão uns com os outros.
Como saber o que é fundamental e o que não é? Para responder a esta questão, Calixto apela ao que ele chama "o consenso dos primeiros séculos". Durante os primeiros cinco séculos da vida da igreja, existiu certo consenso. Algumas posições foram condenadas como heréticas, e nós devemos fazer o mesmo. Não devemos declarar que algo, que não se encontra nos escritos desses primeiros séculos, é fundamental para a salvação. De outro modo, chegaríamos à conclusão de que ninguém se sal¬vou durante os primeiros séculos da vida da igreja.
Isso não quer dizer que devemos crer unicamente no que se encontra nos escritos desses cinco primeiros séculos. Ao contrário, devemos crer em tudo o que se encontra nas Escrituras. Mas existem muitas coisas que se encontram nas Escrituras e não se encontram nos primeiros séculos da história da igreja. Tais coisas devem ser cridas. Quem nelas não crê, cai no erro. Assim sendo, não é herege.
A doutrina da justificação pela fé é um exemplo disso. Essa doutrina encontra-se, indubitavelmente, nas Escrituras. No entanto, não forma parte da fé comum da igreja nos primeiros séculos. Em consequência, ainda que importante, não se exige de todos, como quem nela não cresse fosse considerado herege. Ainda que Lutero tivesse razão, e devemos sustentar sua doutrina, isso não há de nos levar a declarar que os católicos são hereges. O mesmo há de se dizer com respeito à presença de Cristo na comunhão e os calvinistas. Apesar dos calvinistas estarem equivocados, não são hereges.
Desse modo, Calixto esperava chegar a um maior entendi¬mento e aceitação mútua entre os cristãos de diversas confissões. Por isso o consideraram um dos precursores do movimento ecumênico.
Entretanto, os defensores da ortodoxia luterana não estavam dispostos a aceitar as idéias de Calixto. Abraham Calov declarou, enfaticamente, que tudo quanto Deus havia revelado nas Escrituras era absolutamente necessário.
Quem nega ou rejeita parte dela, por muito pequena ou insignificante que essa parte pareça, nega ou rejeita o próprio Deus. Outros teólogos, sem ir tão longe, diziam que, ao introduzir a questão do "consenso dos primeiros cinco séculos", Calixto havia voltado a dar à tradição o papel que Lutero lhe havia tirado. Logo, as idéias de Calixto passaram a chamar-se de "sincretismo" com o qual se dava a entender, falsamente, que Calixto dizia que se devia tomar um pouco de cada uma das confissões cristãs, ou que todas eram igualmente válidas. O único lugar onde o projeto de Calixto teve acolhida favorável foi na Polônia, onde o rei Ladislao IV tratou de colocá-las em prática, estabelecendo um diálogo entre teólogos de diversas confissões. Esse diálogo fracassou. O "sincretismo" de Calixto não teve maiores consequências positivas.
Todavia, isso serve para ilustrar o modo como os teólogos ortodoxos de cada uma das principais confissões, iam se refugiando em suas posições, como se os únicos que mereciam o nome de cristãos fossem os que concordassem com eles em todos os detalhes de sua doutrina.
Esse dogmatismo extremo, ao mesmo tempo que criava partidários decididos, dava lugar a dúvidas cada vez mais generalizadas a respeito da fé cristã ou, pelo menos, do valor da teologia.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Aula 5 - A ortodoxia católica


Ao final do Concílio de Trento, no ano de 1563, havia-se fixado o que seria a ortodoxia católica durante os próximos quatro séculos. Além disso, havia-se promulgado todo um programa de reforma. Mas, tanto essa ortodoxia como essas refor¬mas não precisavam de opositores às fileiras católicas. Por um lado, o programa tridentino baseava-se na centralização do poder em torno da pessoa do papa. Isso ia contra os interesses dos governos seculares, particularmente das monarquias, que, precisamente nesta época pretendiam fazer-se mais absolutas. Por outro lado, não faltavam prelados para quem a vida austera e as reformas dos costumes propostos pelo Concílio, constituíam-se num sacrifício inaceitável. Por último, havia os que pensavam que, em seu entusiasmo de condenar as teses protestantes, os teólogos tridentinos exageraram e que, portanto, era necessário recuperar algumas das antigas teses de Santo Agostinho sobre a superioridade da graça na salvação humana.

O galicanismo e a oposição ao poder do papado
Um dos principais pontos do programa da retorna colocado pelo Concílio de Trento, foi a centralização do poder eclesiástico. O Concílio mesmo teve que ser convocado porque o pa¬pado precisava da autoridade necessária para responder aos desa¬fios do protestantismo. Mas o resultado das deliberações conciliares foi um intento de devolver aos papas a autoridade que haviam tido no apogeu do seu poderio, durante o que chamamos a "Era dos Altos Ideais". Assim, o papado que no início das deli¬berações do Concílio, precisava de prestígio e autoridade, ficou encarregado de dirigir a vida de toda igreja.
Mas essas decisões por parte do Concílio coincidiram e chocaram-se com outros processos políticos que estavam ocorrendo. Era a época do absolutismo real. Já temos visto as opi¬niões que tinham James l e Carlos II acerca das prerrogativas dos reis. Semelhantes idéias circulavam na Espanha, Áustria e França, onde tinham melhor êxito. A isto, unia-se o crescente sentimento nacionalista que levava muitos a pensar que o papa não tinha razão para mistura-se nos assuntos de seus países.
Esse sentimento nacionalista, que tratava de limitar os poderes do papa, recebeu o nome de "galicanismo" (de "Galia", o antigo nome da França), porque foi na França que recebeu maior força. Frente a isso, levantou-se o partido dos "ultramontanos", nome dado àqueles que sustentavam que o centro de autoridade eclesiástica encontrava-se em Roma, "mas além dos montes" (os Alpes).
Como vimos anteriormente, durante as últimas décadas an¬tes da Reforma, o papado existiu sob a sombra do trono francês, que havia conseguido numerosas concessões no que dizia respeito à vida eclesiástica francesa. Prontamente, chamou-se tais con¬cessões de "As Liberdades da Igreja Galicana", por defendê-las com fervor patriótico. Em consequência, os franceses eram católicos à sua maneira, como se pode ver quando Henrique IV, apesar de estar excomungado por Roma, foi feito rei e o clero católico retirou a excomunhão sem consultar o papa.
Estes sentimentos galicanos dificultavam a aplicação dos decretos tridentinos dentro do território francês. Ainda que o próprio Henrique IV, através de uma série de negociações com Roma, se comprometesse a promulgá-los no país, o Parlamento e boa parte do clero opuseram-se, e o Concílio não chegou a ter validade na França.
Em 1615, cinco anos depois do assassinato de Henrique IV, os decretos do Concílio ainda não haviam sido promulgados pelo governo francês e o clero nacional decidiu fazê-lo por conta própria. Ainda que isto pudesse ser feito, porque neste momento boa parte do clero inclinava-se para o ultramontanismo, o próprio fato de que foi o clero francês que decidiu acerca da validade do decreto do Concílio em seu país, daria depois mais argumentos aos defensores das "liberdades galicanas".
O galicanismo tinha, por assim dizer, dois ramos. Havia quem defendesse as "liberdades galicanas" por sentimentos nacionalistas, enquanto outros o faziam porque estavam con¬vencidos de que a autoridade eclesiástica residia nos bispos, e não no papa. Mas ambas as posições convinham para a coroa, que não vacilou em animar os sentimentos galicanos, nem em opor-se ao ultramontanismo, às vezes, a força.
Em outras partes da Europa católica, houve movimentos parecidos com o galicanismo. Destes, o mais importante foi o "febronianismo", que se baseava nas idéias expostas por Justino Febrônio em sua obra “O estado da igreja e o poder legítimo do pontífice romano”. Este livro, publicado em 1673, deu nova vida às antigas idéias conciliaristas. Segundo Febrônio, a igreja é a comunidade dos fiéis, e a eles corresponde o poder em última instância. Mas os bispos, como representantes dos fiéis, são os que foram chamados para governar a igreja. Logo, um concílio universal de bispos tem maior autoridade do que o papa, que, em todo caso, não pode interferir nos assuntos de outras igrejas, a não ser na cidade de Roma. A idéia da jurisdição universal do papa, baseia-se em falsas decretais, um documento espúrio que não merece crédito algum.
Clemente XIII condenou o escrito de Febrônio logo que publicado, mas, apesar disso, as idéias que nele se expressavam, rapidamente ganharam popularidade. Muitos viam no febronianismo uma possibilidade de voltar a reunir católicos e protestantes, à base de um concílio universal que não estivesse domi¬nado pelos elementos papistas. Outros o apoiavam e o difundiam porque era compatível com o crescente sentimento nacionalista e negava ao papado jurisdição sobre os diversos reinos independentes. Na Alemanha, não faltaram opulentos bispos que eram, ao mesmo tempo, senhores seculares de suas dioceses e para quem o febronismo era um modo de evitar que se lhes impusessem reformas decretadas em Trento.
Na corte de Viena, o febronianismo tomou um caráter particular. Ali, o imperador José II utilizou esta doutrina para apoiar um plano de governo que fazia da igreja instrumento seu. José II era um dos príncipes ilustres que apareceram no século XVIII e que se lançaram num programa de reformas nos campos da economia, política e educação. Para levar a cabo seus projetos, este imperador necessitava da igreja, mas não de uma igreja dominada pelo espírito tridentino, que lhe parecia obscurantista e intolerante. Ao contrário, o Imperador desejava poder contar com uma igreja culta. Por isso, encarregou-se da educação do clero, aboliu muitos mosteiros que lhe pareciam instrumentos papais e com os fundos assim obtidos, fundou novas igrejas e fez com que as paróquias rurais tivessem ministros aptos.
Outros governantes mostravam-se inclinados a seguir o exemplo do imperador José. Por isso, a igreja romana que havia condenado o febronianismo em 1764, condenou o josefismo em 1794. Não foram tais condenações, e sim a Revolução Francesa, de que nos ocuparemos mais tarde, que pôs fim ao galicanismo e a outros movimentos afins.
Entretanto, o poder papal havia sofrido outro rude golpe na dissolução da ordem dos jesuítas. Essa ordem, fundada precisamente com o propósito que fora, como um exército nas mãos do papado, não era bem vista pelos soberanos absolutistas que governavam durante boa parte do século XVIIl.
Já vimos como foram os jesuítas os que incitaram vários príncipes católicos alemães a lançarem-se no curso que, por fim, levou à Guerra dos Trinta Anos. O desastre causado por esta guerra, o espírito indiferentista em matéria religiosa que ia se posicionando na Europa, e os interesses dos reis, conspiraram para pôr fim à Sociedade de Jesus. Em particular, esta ordem era mal vista pela casa de Bourbon, pois, repetidamente, havia dado mostras de favorecer a sua rival, a Casa de Áustria. Portanto, o sol dos Bourbons foi chegando ao seu zênite e o da Áustria ao seu ocaso. A situação dos jesuítas foi ficando cada vez mais precária.
Em 1758, aconteceu um atentado contra José l, rei de Portugal, e acusaram os jesuítas de estarem envolvidos na conspiração. O resultado foi que, no ano seguinte, a Sociedade de Jesus foi expulsa de Portugal e suas colónias, enquanto que a coroa se apoderava de seus abundantes bens. Na França, devido em parte à inimizade da favorita do Rei, Madame Pompadour, a Sociedade de Jesus foi extinta em 1764. Três anos mais tarde os jesuítas foram expulsos da Espanha e suas colónias pelo ilustre rei Carlos III. Já temos narrado as consequências que isto acarretou para a igreja na América. Nesse mesmo ano de 1767, Fernando IV, de Nápoles, filho de Carlos III, seguiu o exemplo de seu pai.
Tudo isto levou a um esforço conjunto por parte dos Bourbons para desfazer-se dos jesuítas, não só em seus domínios co¬mo em todo o mundo. Em princípios de 1769, os embaixadores bourbônicos em Roma apresentaram ao papa Clemente III uma resolução conjunta na qual requeriam a dissolução da Sociedade de Jesus. Mas o Papa sofreu uma hemorragia cerebral, (alguns dizem que em consequência do desgosto causado por este docu¬mento) e morreu poucos dias após.
O novo papa, Clemente XIV, tratou de resistir à pressão dos Bourbons. Mas, no final, cedeu e, em 1773, a Sociedade de Jesus foi dissolvida por ordem do Papa. Exceto na Prússia e na Rússia Branca, cujos soberanos tinham suas razões para não acatarem o mandato papal, a Sociedade de Jesus deixou de existir, e o papado perdeu, assim, seu instrumento mais forte e fiel. O galicanismo, o febronianismo, o josefismo e o desaparecimento dos jesuítas mostraram que durante esta época de dogmas e de dúvidas, ao mesmo tempo em que os papas insistiam, cada vez mais, em sua jurisdição universal, na realidade iam perdendo seu poder e autoridade.

0 Jansenismo
O Concílio de Trento havia condenado categoricamente as proposições de Lutero e Calvino, acerca da graça e da predestinação. Mas havia quem temesse que uma interpretação extrema das decisões desse concílio pudesse vir a contradizer os ensinos do grande mestre Santo Agostinho, acerca desses temas. Portanto, desde o fim do século XVI, particularmente nas universidades de Salamanca e Louvain, suscitaram-se disputas sobre a graça, predestinação e o livre arbítrio.
Em Salamanca, a discussão logo tornou-se um conflito entre dominicanos e jesuítas. O jesuíta Luis de Molina havia publicado em Lisboa um livro: “Da concordância entre o livre arbítrio e os dons da graça”. Desse modo, a aceitação da graça não se deve a predestinação, senão ao contrário. Domingos Bânez, professor de Salamanca e um dos mais respeitados teólogos da época, declarou que o que Molina propunha era contrário aos ensinos de Agostinho, e que, portanto, devia ser condenado.
Prontamente, os jesuítas se reuniram em redor das teses de Molina, e os dominicanos em torno das de Bânez. Em Valladolid, onde ambas as ordens tinham importantes centros, houve dois debates que não conseguiram grande coisa — exceto que, no segundo, por pouco não ocorreu um motim. Cada grupo acusou ao outro ante a Inquisição Espanhola e esta, julgando-se incapaz de pronunciar uma decisão, encaminhou a questão a Roma. O Papa, no tempo Clemente VIII, tratou de resolver a questão proibindo toda discussão do assunto e pedindo o conselho das principais faculdades de teologia. Os dominicanos insistiam em que as teses de Molina contradiziam tanto a Santo Agostinho, como a São Tomé e, portanto, deviam ser condenadas como heréticas, enquanto que a deles simplesmente repetiam o que os grandes mestres da igreja haviam dito e, portanto, não deviam nem podiam ser proibidas. O Papa, convencido de que os dominicanos tinham razão, dispunha-se a condenar Molina, quando os jesuítas e o Rei da Espanha lhe aconselharam maior cautela.
Clemente presidiu, então, outra série de discussões que lhe deram maior tempo para o assunto. Conscientes de que o Papa inclinava-se para os dominicanos, os jesuítas da Universidadede Alcalá começaram a semear dúvidas acerca da autoridade do papado. Na morte de Clemente, a discussão continuava. Depois do brevíssimo pontificado de Leão X l, o novo papa PauIo V decidiu que o melhor era evitar qualquer condenação, declarando que nem os dominica¬nos nem os jesuítas estavam ensinando falsas doutrinas. Além disso, proibiu-os de continuarem se acusando mutuamente de heresia (porque os jesuftas diziam que os dominicanos eram calvinistas e os dominicanos acusavam os jesuítas de serem pelagianos). Contudo, as tensões entre jesuítas e dominicanos, que esta controvér¬sia acalentou, continuaram por longo tempo.
As controvérsias na Universidade de Louvam tiveram maiores repercussões. Ali, o teólogo Miguel Bayo propôs teses muito semelhantes às de Agostinho. Segundo ele, o pecado humano é tal que nossa própria natureza ficou corrompida, senão totalmente, ao menos o suficiente para que não possamos, por nós mesmos, voltarmos para Deus. O arbítrio do ser humano pecador não pode produzir senão o mal, portanto, é incapaz de con¬verter-se a Deus, sem que antes a graça divina o traga para o bem. Tais opiniões, que sem dúvida se encontram nas obras de Santo Agostinho, aproximavam-se demasiadamente das de Calvino para que pudessem passar inadvertidamente. Em 1567, Pio V condenou setenta e nove proposições tomadas das obras de Bayo. Este as repudiou e aceitou o decreto papal, mas continuou ensinando uma versão ligeiramente distinta de tais teses condenadas. Assim, doze anos mais tarde, Gregório XIII voltou a condenar seus ensinos. Apesar da oposição papal, a faculdade teológica de Louvain continuava apoiando a Bayo, a quem fez chanceler da universidade. Quando o jesuíta Lesio atacou as teses de Bayo, a universidade respondeu declarando que Lesio era pelagiano. Os jesuítas responderam chamando a Bayo e aos seus de calvinistas. Como no caso da Espanha, por último as autoridades trataram de acalmar o conflito simplesmente ordenando que cada grupo deixasse de atacar o outro. Mas tal solução não podia perdurar. As opiniões de Bayo, apesar de já terem sido condenadas por Roma em 1567 e 1579, continuavam circulando em Louvain, e não faltava quem as ensinasse desde a cátedra, ainda que de modo sutil. Assim, a controvérsia estava sempre pronta a explodir de novo.
Essa explosão ocorreu várias décadas mais tarde, em torno de Cornélio Jansen, bispo de Ypres, na Bélgica e, antes, professor de Louvain. Em 1640, publicou-se, postumamente, a volumosa obra de Jansenio, “Agostinho”, que causou grande agitação. A obra em si não pretendia ser mais que um estudo e exposição dos ensinamentos do grande bispo de Hipona. Mas, o que Jansen propunha com ela, era mostrar que Agostinho havia ensinado a primazia e a necessidade da graça de um modo que não con¬cordava com as doutrinas comumente aceitas pela igreja — propostas principalmente pelos jesuítas. Esta era uma tarefa a que Jansen havia se consagrado secretamente, anos antes, para a qual se propunha a ler e reler todas as obras de Agostinho, tantas vezes quantas fossem necessárias. Portanto, seu livro apresentava argumentos contundentes com os quais confirmavam sua interpretação de Agostinho e não podia, senão, causar sérias controvérsias.
De fato, “Agostinho”, de Jansen, era parte de todo um programa de reformas da igreja. Vários anos antes, Jansen tinha discutido este programa com seu amigo João Ambrósio Duvergier, mais conhecido como "São Cirano", por ser abade do mosteiro deste nome. Ambos haviam chegado à conclusão de que a igreja necessitava de uma reforma fundamental e que, parte dessa reforma, devia consistir em uma redescoberta das doutrinas de Santo Agostinho acerca da graça e da predestinação.
De acordo com o ponto de vista de Jansen e São Cirano, durante a Idade Média, a igreja havia perdido de vista a mensagem da graça imerecida de Deus e, em data mais recente, em meio de sua polêmica contra o protestantismo, simplesmente havia insistido em seus erros medievais. Estes dois amigos juramentaram-se para levar a igreja a uma redescoberta da primazia da graça e do sentido do evangelho, que, quando se lê, vê-se à luz dessa primazia. Não eram, nem queriam ser protestantes. Mas estavam conscientes de que seu programa de reforma era tal que, se não se cuidassem, os condenariam como protestantes. Por isso, durante longo tempo mantiveram uma correspondência na qual ocultavam seus propósitos, mediante um código secreto. Assim, por exemplo, o cardeal Richelieu era "Purpurato" e os protestantes eram chamados de "pepinos".
Durante esses anos de trabalho em secreto, São Cirano ocupou-se em estabelecer os contatos que lhe abriram caminho para a proposta reforma. Jansen se dedicou a desenvolver as bases teológicas do movimento. Por isso, enquanto Jansen lia e relia as obras de Agostinho dezenas de vezes, São Cirano ia se abrindo em direção aos círculos mais influentes da França.
O principal ponto de apoio de São Cirano foi a abadia de Port Royal, nos arredores de Paris. Essa abadia, debaixo da direção da Madre Angélica, havia conquistado o respeito das pes¬soas mais religiosas da capital francesa. A própria Madre Angélica tinha sido colocada no convento com a idade de oito anos. Aos onze, no mesmo dia em que recebeu a primeira comunhão, foi feita abadesa. Essa nomeação, feita à base da posição social da família de Angélica, nos dá uma idéia do nível a que havia descido a vida monástica em Port Royal e outras casas semelhantes. Mas, seis anos mais tarde, ao escutar um sermão de um pregador que por lá passou, Madre Angélica decidiu reformar seus costumes e os do convento cujo cuidado lhe haviam designado. Começou levando uma vida distinta, à qual, prontamen¬te, se juntaram outras monjas. Por fim, Port Royal começou a ter uma fama como centro de piedade e devoção, ao qual se dirigiam muitas pessoas de inquietudes religiosas.
Uns anos antes da publicação de “Agostinho”, o abade São Cirano havia feito seus primeiros contatos com Port Royal e com Antoine Arnauld, irmão da abadesa. Pouco a pouco, foi ganhando ascendência sobre o mosteiro e sobre o círculo religioso que se havia formado em redor dele mesmo, ao qual pertenciam várias famílias de alta estirpe.
A fama de São Cirano cresceu deste então junto a de Port Royal. Os mesmos elementos de inquietudes religiosas que iam ao convento tomaram o ardente abade por conselheiro e diretor espiritual. Sob sua inspiração, várias pessoas abandonaram sua antiga vida e foram viver como "ermitãos", nos arredores de Paris. Além disso, São Cirano e seus seguidores fundaram toda uma série de "pequenas escolas", cujo propósito fundamental era formar o caráter dos discípulos, o que contrastava com a educação de tipo autoritário das escolas da época — em particular dos jesuítas, que logo tiveram razões para se oporem a São Cirano e aos seus.
Entretanto, o fato de que São Cirano ganhava vários adeptos, lhe criava também sérias inimizades. Os jesuítas viam em suas escolas uma crítica e uma ameaça à deles. Além disso, era a época de máximo poderio do cardeal Richelieu, para quem todo excesso de zelo religioso era uma ameaça à integridade do Estado. Por razões semelhantes às que o levaram a opor-se aos huguenotes, Richelieu via com receio o crescente círculo que se formava em torno de São Cirano. Por algum tempo, tratou de ganhar o abade. Este não dava mostras de querer se aliar ao primeiro ministro, porém, pelo contrário, atreveu-se a criticá-lo. Por fim, Richelieu ordenou que São Cirano fosse detido e levado ao castelo de Vincennes, onde passou os cinco anos seguintes.
Uma semana antes de ser detido São Cirano, Jansen havia morrido. Portanto, sua projetada reforma parecia haver-se abortado. Na prisão, ainda que lhe tratassem bem e lhe permitissem continuar escrevendo a seus amigos e seguidores, São Cirano chegou a duvidar da causa a que havia consagrado vários anos.
Assim estavam as coisas, quando se publicou “Agostinho”, de Jansen, dois anos depois da morte de seu autor. A obra de Jansen era um ataque às doutrinas sobre a graça e a predestinação, que já mencionamos, quando nos referimos a Luís de Molina. Frente a tais opiniões sustentadas pelos demais jesuítas, Jansen apela à autoridade de Santo Agostinho. Segundo esse santo ve¬nerado, o ser humano, depois da queda, não tem liberdade para não pecar. Como foi criado, originalmente, a possuía. Porém, a queda de tal modo corrompeu sua liberdade que, agora, em seu estado natural, somente é livre para pecar. O humano pecador não tem forças nem vontade para olhar para Deus e, portanto, ama a si mesmo, ama as criaturas com o amor que devia reservar-se unicamente ao Criador. O livre arbítrio do pecador é, na realidade, escravo do pecado e necessita ser libertado pela graça divina. Sem essa graça, nada de bom podemos fazer. Essa graça é, como seu nome o diz, absolutamente gratuita. Nada podemos fazer para merecê-la (pois ao contrário, estaríamos dizendo que nosso arbítrio pecador pode fazer o bem). Como graça imerecida, é dom de Deus. E é soberana e irresistível, não porque force a vontade, mas porque trabalha dentro da vontade de tal modo que a leva a desejar o bem. Em consequência, a salvação depen¬de de predestinação, pois Deus predestinou a uns para a salvação, enquanto que os outros continuam sendo parte dessa "massa de condenação" que é a humanidade depois do pecado. A salvação e a condenação não dependem, em última instância, da vontade humana, mas da predestinação divina que faz os eleitos receberem o dom da graça, e os réprobos, carecendo desse dom, seguem como parte da "massa de condenação".
Sem dúvida, tudo isto havia sido ensinado por Santo Agostinho, e o livro de Jansen oferecia abundantes provas. Mas também era certo que o que Jansen atribuía ao venerado bispo do século quarto se parecia muito com o que Calvino e seus seguidores haviam proposto em data muito mais recente. Em sua obra, Jansen tratava de mostrar que suas doutrinas eram distintas das de Calvino. Mas seus argumentos não eram suficientes e, em todo caso, baseavam-se em distinções bastante sutis. Uma vez mais, os jesuítas foram os mais vigorosos defensores da ortodoxia tridentina na frente das supostas inovações dos que insis¬tiam na primazia da graça. Atrás de uma longa série de gestões, conseguiram que várias das teses de Jansen fossem condenadas pelo papa Urbano VIII em 1643.
Enquanto tudo isto acontecia, o abade de São Cirano continuava prisioneiro. Após o momento de fraqueza inicial, quando duvidou da causa a que se havia consagrado, tomou a pena e, mediante uma abundante correspondência, conseguiu manter vivo o movimento que se havia formado ao redor de sua pessoa. À sua indubitável sinceridade e habilidade se somaram agora a auréola de mártir que muitos lhe atribuíam.
Em 1643, no mesmo ano em que Urbano condenou as teses de Jansen, Mazarino, que tinha sucedido ao falecido Richelieu, colocou em liberdade São Cirano. Seus partidários o receberam com mostras de extraordinária alegria, dando graças a Deus por sua libertação. Por sua vez, o abade dedicou-se a continuar sua obra e a escrever contra o protestantismo, quem sabe para acalmar a inquietude de quem visse semelhanças entre as doutrinas de Jansen e de Calvino.
Ainda que este círculo, que se formou ao redor de Port Royal e do abade de São Cirano, fosse partidário das teses de Jansen, durante os anos transcorridos desde a publicação de “Agostinho”, o centro da controvérsia havia mudado. A princípio, tratava-se das questões acerca da relação entre a graça e o livre arbítrio, em consequência da doutrina da predestinação. O "jansenismo" parisiense, apesar de sustentar a posição doutrinária de Jansen, havia se tornado um movimento mais prático. Tratava-se, principalmente, de um centro de resistência contra a lassidão que parecia reinar na vida moral e devota. Em particular, os jansenistas de Port Royal opunham-se ao "probabilismo" proposto por alguns jesuítas.
Segundo o probabilismo, em um caso onde haviam várias alternativas de ação, todas elas eram aceitáveis sempre que tivessem alguma possibilidade de serem corretas, por mais remota que essa possibilidade parecesse. O probabilismo permitia aos confessores as suas penitências ainda que não estivessem de acordo com suas ações. Ao mesmo tempo, era muito difícil manter qualquer rigor moral, pois sempre era possível achar razões pelas quais as ações podiam justificar-se. Frente a este, os jansenistas do círculo de São Cirano opunham um firme sentido da disciplina. É por isso que alguém chegou a dizer que as monjas de Port Royal eram "puras como anjos e orgulhosas como demónios".
O abade de São Cirano morreu pouco depois de sua libertação. Mas deixou atrás de si, como chefe do partido jansenista, Antoine Arnauld, irmão da Madre Angélica. Era a época em que as autoridades, tanto eclesiásticas, como reais, tomaram medidas contra o jansenismo. Arnauld defendeu-se mais como advogado do que teólogo, e sua defesa foi tal que se chegou a chamá-lo de "O grande Arnauld". Porém, o campeão do jansenis¬mo, nesta segunda época, foi o filósofo Blaise Pascal. Pascal havia dado mostras de gênio desde muito jovem, particularmente nos campos da matemática e da física. Aos trinta e um anos de idade, oito antes de sua morte, converteu-se ao jansenismo. Para ele aquilo foi uma profunda experiência religiosa e basta ler seus escritos a partir dessa data para perceber que se tratava de um homem de profunda sensibilidade, para quem a questão de sua relação com Deus era de primeira importância. Quando a faculdade teológica da Sorbona condenou Arnauld, Pascal publicou anonimamente a primeira de suas Epístolas Provinciais, nas quais atacava os jesuítas e os demais adversários do jansenismo, com fino humor e profunda perspicácia teológica. Entre 1656 e 1657, apareceram dezoito dessas "epístolas", supostamente dirigidas aos jesuítas de Paris por um habitante das províncias. Seu êxito foi completo. Fala-se que até Mazarino, mesmo sendo inimigo dos jansenistas, não pôde conter o riso ao ler a primeira delas. Por todas as partes as pessoas riam dos jesuítas e seu partido. As múltiplas tentativas de refutar as Epístolas provinciais eram tão inferiores a elas, que se tornavam motivo de zombaria e desprezo.
As Epístolas provinciais foram acrescentadas ao índice de livros proibidos pela igreja romana. Pascal, após publicar as primeiras dezoito, escreveu outras que ficaram inéditas. Mas a opinião pública se inclinava de tal modo para os jansenistas que as autoridades tiveram que recuar em seu empenho de destrui-los. A pressão que fora exercida algum tempo sobre Port Royal, amenizou. As "pequenas escolas" dos jansenistas, que haviam sido fechadas pelo governo, voltaram a abrir suas portas. O Jansenismo parecia estar na moda entre os aristocratas, muitos dos quais se declaravam seus partidários.
Contudo, os elementos de oposição também eram fortes. O Rei, na ocasião Luís XIV, estava disposto a seguir o conselho que Mazarino lhe havia dado antes de morrer, no sentido de que não tolerasse esse movimento que ameaçava voltar como nova seita. Logo começou a reação anti-jansenista. A assembléia do clero condenou o movimento. Tomou medidas para assegu¬rar-se de que todos os clérigos afirmavam essa condenação. As monjas de Port Royal foram dispersadas. Nem as monjas, nem alguns dos bispos jansenistas estavam dispostos a retratar-se. Apesar de seu galicanismo, Luís XIV solicitou a ajuda do papa Alexandre VII, que ordenou a todos os membros do clero que repudiassem o jansenismo.
Os jansenistas debatiam entre si se deviam resistir, ou submeter-se, quando Alexandre morreu. Seu sucessor, Clemente IX, era pessoa de espírito conciliador e preferiu seguir a rota das discussões e negociações, à da condenação. Assim, chegou-se a um acordo precário. As monjas de Port Royal puderam regressar a seu convento. Isto aconteceu em 1669, e durante todo o final desse século, o jansenismo continou existindo dentro do seio do catolicismo romano, fazendo-se forte nele. Antoine Arnauld e Port Royal voltaram a ocupar um lugar proeminente na vida religiosa da França. Inocêncio XI, eleito papa em 1676, manifestou-se contra as teses probabilistas dos jesuítas, que foram condenadas. A Sociedade de Jesus foi posta nas mãos de pessoas de espírito mais rigoroso. E até se comentou de tornar cardeal a Arnauld.
Próximo ao final do século, a situação começou a mudar. As monjas de Port Royal foram proibidas de aceitar noviças, com o que estaria o convento condenado a morrer. Pouco deois, Arnauld acreditou estar em perigo e partiu para os Países Baixos, onde morreu em 1694. Seus sucessores, como dirigentes do movimento, logo se viram envolvidos em amargas controvérsias com alguns dos mais destacados teólogos da época. Luís XIV, tornava-se mais intolerante com o correr dos anos, vol¬tando a tomar medidas contra os jansenistas e conseguindo que o papa Clemente XI os condenasse.
O partido anti-jansenista voltou sua fúria sobre as monjas de Port Royal. Nesse convento que havia se tornado símbolo do movimento, não ficaram mais que vinte e duas monjas, pois sendo-lhes proibido receber noviças, as mais velhas tinham mor¬rido. Quando se lhes ordenou que declarasse sua obediência ao decreto papal firmado num documento contra o jansenismo, o fizeram com reservas, o que constou no próprio documento. Por fim, no final de 1709, a polícia apoderou-se do convento e dispersou as monjas anciãs, levando-as à força a diversos conventos. No ano seguinte, por ordem real, o mesmo convento foi destruído. Mas as pessoas seguiam em peregrinações ao cemitério e o Rei ordenou que também o campo santo fosse arrasado. Segundo contam os pardidários do jansenismo, enquan¬to os coveiros desenterravam os corpos, os cachorros brigavam pelos restos que ainda não se tinham corrompido de todo.
A tudo isto se somou o papa Clemente XI, que, em 1713, mediante a bula Unigénitas, condenou categoricamente o janse¬nismo e seus chefes. Ao que parece, havia-se dado o golpe de morte ao movimento.
Mas o jansenismo continuou existindo e até floresceu. Não se tratava agora, como no princípio, de uma doutrina acerca da graça. Tampouco era, como nos melhores tempos de Port Royal, um chamado à disciplina moral e religiosa. Era bem mais um partido político que começou a formar alianças com o galicanismo. Luís XIV morreu em 1715 e, durante o reinado seguinte, foram se unindo ao partido jansenista diversos elementos que pouco tinham a ver com as doutrinas originais. Alguns membros do baixo clero se fizeram jansenistas como um modo de protestar contra a opulência e a tirania de seus superiores. A eles se associaram aqueles que se opunham à autoridade romana e viam na condenação do jansenismo uma violação da "antigas liberdades da igreja galicana". Pouco a pouco, o movimento foi atraindo a outros que, por diversas razões, opunham-se à religião estabelecida. Ao mesmo tempo, apareceu dentro do movimento uma ala que empenhava-se para recuperar o espírito perdido. Por fim, e ainda que condenado repetidamente, o movimento desapareceu, não por causa de tais condenações, mas por sua própria desintegração interna.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Aula 4 - A REVOLUÇÃO PURITANA


A Assembléia de Westminster

Aula 4
“O magistrado civil não pode tomar para
si a administração da Palavra e dos Sacramentos...
Tem, sim, a autoridade e obrigação de ver
que se conservem em toda a Igreja a unidade
e a paz, que a verdade de Deus seja mantida pura
e íntegra, que todas as heresias e blasfémias
sejam tiradas e que todas as corrupções e abusos
no culto sejam reparados e evitados”.
Confissão de Westminster

Vimos anteriormente a história do cristianismo na Inglaterra até o reinado de Isabel e vimos também como essa rainha conseguiu estabelecer um equilíbrio entre os elementos conservadores, que desejavam reter, tanto quanto fosse possível, das antigas práticas católicas e dos protestantes de tendências calvinistas, para quem era necessário que toda vida e a organização da igreja se ajustassem ao que criam serem as normas bíblicas.
Na vida de Isabel, esse equilíbrio conseguiu manter-se. Mas as tensões existentes na situação se manifestaram, repetidamente, e só a mão forte da Rainha e de seus ministros pôde pôr-lhes fim.

James I
Isabel morreu em 1603, sem deixar descendência e, em suas últimas instruções, indicou que seu sucessor devia ser o fi¬lho de Maria Stuart, James que já governava na Escócia. A transição aconteceu sem maiores dificuldades, e assim começou a reinar na Inglaterra a casa dos Stuart.
Todavia, James (o primeiro rei desse nome na Inglaterra, mas o sexto da Escócia) tinha que enfrentar grandes dificuldades. Primeiramente, os ingleses sempre o consideraram estrangeiro. O plano do Rei de unir ambos os reinos, ainda que depois tenha dado resultado, de início lhe criou inimigos tanto na Inglaterra como na Escócia.
Ao mesmo tempo, as sólidas bases em que Isabel havia fundado o comércio começavam a dar frutos, e isso lhe dava maior fama na classe mercantil e burguesa. Mas a política de James, tanto no campo internacional como no interno, não era do agrado dessa classe que esperava que a coroa estabelecesse uma ordem internacional que a favorecesse, ainda que não estivesse disposta a sacrificar-se em prol dessa ordem.
Um exemplo característico desse conflito pode ser visto no caso da Guerra dos Trinta Anos, onde, como vimos, a participação (ou melhor, a falta de participação) da Inglaterra foi vergonhosa. Deles se queixavam os comerciantes ingleses, em sua maioria protestantes, para quem o curso da guerra parecia uma ameaça, tanto à sua religião como a seus bolsos. Mas, ao mesmo tempo, seus representantes no Parlamento negavam-se a aprovar os impostos necessários para intervir decisivamente nos conflitos que aconteciam na Alemanha.
Por esta e outras causas, durante todo o reinado de James e de seu filho sucessor, Carlos l, foi aumentando a oposição à coroa por parte daqueles protestantes que pensavam que a Reforma não havia se expandido suficientemente na Inglaterra, e que isso devia-se em boa medida à política dos reis e seus conselheiros.
Estes protestantes radicais não estavam organizados em um só grupo e, portanto, é difícil descrevê-los com exatidão. O nome que se lhes deu foi o de "puritanos", porque insistiam na necessidade de regressar à pura religião bíblica. Ainda que nem todos concordassem em alguns detalhes, no geral os puritanos opunham-se a muitos elementos do culto tradicional que a Igreja Anglicana havia conservado. Entre esses elementos estavam o uso da cruz no culto, certas vestimentas sacerdotais e a questão da comunhão ser celebrada em uma mesa ou em um altar, a qual implicava em diversas interpretações do sentido da comunhão e levava a longas discussões acerca de onde deveria ser colocada essa mesa ou altar.
Ao mesmo tempo, os puritanos insistiam na necessidade de levar uma vida sóbria, segundo os mandamentos bíblicos. Sua oposição a boa parte do culto oficial relacionava-se com a pompa que fazia parte dele, pois, para eles, todo luxo ou ostentação devia ser evitado. Muitos insistiam na necessidade de guardar o Dia do Senhor, dedicando-se exclusivamente aos exercícios religiosos e à prática da caridade. Ainda que uns poucos fossem "sabatistas", estes guardavam o sábado, a imensa maioria guardava o domingo. Sem se oporem absolutamente ao uso do álcool, pois muitos deles bebiam com moderação, criticava-se a embriaguez de alguns ministros. O teatro, o qual frequentavam, apresentava gracejos de duplo sentido, os esportes que se celebravam no Dia do Senhor e, em geral, os costumes licenciosos, eram objeto especial de seus ataques.
Muitos dos puritanos opunham-se ao episcopado, dizendo que os bispos, pelo menos como existiam em sua época, eram uma invenção posterior à Bíblia, onde a igreja era governada de outro modo. Os mais moderados simplesmente diziam que, na Bíblia, se falava de diversos modos de governar a igreja e que, portanto, o episcopado, ainda que pudesse ser bom, não era "de direito divino", isto é, não era parte necessária da Igreja, como o Novo Testamento a descrevia. Outros insistiam em que a igreja do Novo Testamento governava-se mediante "presbitérios", isto é, grupos de anciãos, e que tal governo era necessário em uma igreja verdadeiramente bíblica. Outros afirmavam a independência de cada congregação e, portanto, passou-se a chamar-lhes "independentes". Entre estes últimos — além dos "sabatistas" - havia quem cresse que o batismo devia reservar-se aos adultos e, portanto, receberam o nome de "batistas". Ainda que todos estes grupos não concordassem entre si, no geral inspiravam-se em ideias de Calvino, Zwinglio e demais reformadores suíços. Posteriormente, alguns dos mais radicais se inspiraram também nos anabatistas do Continente.
Entretanto, na igreja oficial acontecia uma evolução paralela, mas em sentido contrário. O equilíbrio isabelino havia se aperfeiçoado, estabelecendo-se uma igreja cuja teologia era um calvinismo moderado e, não obstante, conservava em seu culto todos os elementos tradicionais que não se chocavam diretamente com sua nova teologia.
Mais adiante, falaremos do Sínodo do Dordrecht, onde se reuniram calvinistas de diversos países para determinar o que, desde então, seria a ortodoxia reformada. A esse Sínodo assistiram delegados da Igreja da Inglaterra que, com isso, se declarou parte da fraternidade internacional das igrejas calvinistas. Mas o acerto isabelino não podia perdurar. Para defender o culto tradicional, logo se começou a abandonar alguns dos princípios calvinistas. Alguns dos mais importantes teólogos da igreja oficial sentiam-se tão surpreendidos pela beleza do culto que pareciam prestar pouca atenção à necessidade de ajustá-lo à fé bíblica. Rapidamente, alguns puritanos começaram a temer que se organizasse um movimento para retornar ao romanismo.
Tudo isto existia já em embrião, quando James I herdou a coroa de Isabel. A partir daí, os conflitos que já estavam latentes se fariam cada vez mais violentos. Os puritanos temiam o novo soberano, James, filho da católica Maria Stuart. Apesar de tais suspeitas, James não favoreceu aos católicos, que, desde o princípio de seu reinado, solicitaram varias concessões, sem maiores resultados. Seu ideal era a monarquia absoluta que existia na França e que, na Escócia, os presbiterianos não o haviam permitido implantar. Possivelmente, em razão desses conflitos com o presbiterianismo escocês, James estava convencido da necessidade de apoiar o episcopado para ter uma base desustentação. Segundo o próprio Rei dizia, "sem bispos não há rei".
O caráter pessoal de James contribuiu para o seu próprio desprestígio. Era homossexual e seus favoritos gozavam de enormes privilégios em sua corte e em seu governo. Ao mesmo tempo que queria ser rei absoluto, oscilava entre uma rigidez caprichosa e uma debilidade covarde. Ainda que manejasse suas finanças honradamente, era pródigo em gastos desnecessários e, frequentemente, faltavam fundos para os projetos de primeira necessidade. Deu títulos e poderes a seus amigos com uma liberalidade que ofendia aqueles que haviam servido a coroa por longo tempo. E muitos desses amigos mostravam-se incapazes de enfrentar as responsabilidades colocadas sobre eles.
James tratou de seguir uma política religiosa semelhante a de Isabel. Os únicos que foram perseguidos com certa constância foram os anabatistas, cujas idéias políticas lhe causavam terror. Os católicos eram vistos como pessoas leais ao Papa e, portanto, como possíveis traidores. Mas, se o papa reconhecia o direito de James de reinar e condenava o regicídio, que alguns católicos extremistas propunham, o Rei estava disposto a tolerar os católicos em seus reinos. Quanto aos presbiterianos, o Rei inclinava-se a tolerá-los e a até fazer-lhes algumas concessões. Mas, não podia abandonar o sistema episcopal de governo, pois estava convencido (e era certo) que os bispos estavam entre os mais decididos e úteis defensores da coroa.
Durante todo reinado de James, foi aumentando a inimizade entre a alta hierarquia da igreja oficial e os puritanos. Em 1604, Bancroft, o arcebispo de Canterbury, fez aprovar uma série de cânones em que se afirmava que a hierarquia dos bispos era uma instituição de origem divina, sem a qual não podia haver verdadeira igreja.
Tal afirmação implicava num retrocesso das igrejas protestantes do Continente, muitas das quais não tinham bispos e, portanto, foram vistas pelos puritanos como o princípio de um processo destinado a reintroduzir o romanismo na Inglaterra. Além disso, vários dos 141 cânones aprovados a pedido do Arcebispo eram dirigidos contra os puritanos.
O Parlamento estava em sessão, pois James teve que convocá-lo para que aprovasse uma série de impostos que o tesouro real necessitava. Mas, particularmente, na Câmara Baixa ou dos Comuns, havia muitos puritanos que se somaram a outras pessoas de semelhante convicção, para apelar ao Rei. James convocou uma conferência, que se reuniu em Hampton Court, que ele mesmo presidiu. Quando um dos puritanos referiu-se de passagem a um "presbitério", o Rei declarou que "um presbitério se harmoniza tanto com a monarquia como Deus se harmoniza com o Diabo". Todo intento de chegar a um acordo fracassou, e o único resultado daquela conferência foi a nova tradução da Bíblia que apareceu em 1611 e que se conhece como "Versão King James".
A partir de então, manifestou-se uma crescente inimizade entre a Câmara dos Comuns e os elementos mais resistentes do episcopado. Estes se aliaram à coroa, afirmando que tanto os bispos como os reis exerciam suas funções por direito divino. Em 1606, aprovou-se uma série de cânones ainda mais repressivos que os anteriores. O Parlamento respondeu atacando, não diretamente ao Rei e ao Arcebispo, senão aos mais imprudentes entre seus defensores. Por último, durante o reinado seguinte, o conflito levaria à guerra civil.
Entretanto, em fins de 1605, produziu-se a famosa "Conspiração da Pólvora". No ano anterior, havia-se ditado uma lei repressora contra os católicos, sob o pretexto de que eram leais ao papa e não ao trono. A mesma lei decretava penas maiores, mas o interesse do Estado era quebrar o poder dos católicos e recolher fundos e, portanto, muitos condenados viram-se obrigados a pagar fortes multas, ou perderiam seus bens. Em todo caso, alguns dos católicos chegaram à conclusão de que era necessário desfazer-se do Rei. Um deles alugou uma adega que se estendia sob o local onde se reunia o Parlamento.
O plano era introduzir nela barris de pólvora como se fossem de vinho, e fazê-los voar quando o Rei estivesse abrindo a sessão seguinte da Assembleia. Desse modo, pereceriam o soberano e boa parte dos puritanos do Parlamento. Mas a trama foi descoberta. Os principais conspiradores e muitos outros cuja participação no complô não se comprovou, foram executados. Em algumas partes do país, houve perseguição aos católicos. O próprio Rei parece ter tratado de distinguir entre os culpados e os inocentes. Mas não deixou de aproveitar a ocasião para que se impusessem mais multas e confiscações. Assim, houve milhares de católicos encarcerados.
Através dos conflitos dos seus primeiros anos de reinado, James tratou de governar sem o Parlamento. Mas somente essa assembleia tinha direito de determinar novos impostos e, por fim, em 1614, o Rei viu-se obrigado a convocá-la novamente, pois sua situação financeira era desesperadora. As novas eleições resultaram numa Câmara dos Comuns, ainda menos disposta que a anterior a dobrar-se ao Rei e aos bispos e, portanto, James a dissolveu e tratou de dar uma solução aumentando aquelas taxas que tinha direito a impor e solicitando empréstimos dos nobres e dos bispos.
Estourou, então, a Guerra dos Trinta Anos. O eleitor do Palatinado, Federico, havia aceitado a coroa da Boêmia, contando com o apoio de James, que era seu sogro. Mas o Rei da Inglaterra não veio em seu auxílio, e muitos protestantes, para quem Federico era um herói, concluíram que James era um covarde e um traidor. O mínimo que o Rei poderia fazer era apoiar economicamente os protestantes da Alemanha, mas, como dissemos, carecia de fundos e não podia recebê-los sem o acordo do Parlamento. Por fim, em 1621, o Rei convocou novamente esse corpo legislativo, com a esperança de que, em vista das necessidades dos protestantes alemães, apro¬vassem os impostos necessários.
Contudo, ao tempo em que James convocava o Parlamento, fazia também esforços para casar seu filho Carlos com uma infanta da Espanha. A possibilidade de tal aliança com a Casa de Áustria era um escândalo para os puritanos do Parlamento, que aprovaram pequenas somas e logo passaram a apresentar seus agravos ante a coroa. Irritado, o Rei encarcerou vários dos dirigentes dos Comuns e declarou dissolvida a legislatura.
O projetado matrimónio não chegou a concretizar-se e, em 1624, James voltou a convocar o Parlamento, para ter que dissolvê-lo no ano seguinte, sem ter conseguido os subsídios que a coroa necessitava. Pouco tempo depois, o Rei morreu e o sucedeu seu filho, Carlos.

Carlos I
O novo rei era tão partidário da monarquia absoluta como o havia sido seu pai, e por isso logo se chocou com o Parlamento. Este mostrava-se desconfiado, porque atrás do fracasso da última proposta de casamento, Carlos havia se casado com a princesa Henriqueta Maria, irmã de Luis XIII, da França. Como parte das negociações desse matrimónio, haviam sido feitas várias concessões aos católicos ingleses, e havia sido prometido à nova rainha e a seu séquito, que poderiam continuar praticando sua religião. Muitos dos puritanos viam em tais concessões o regresso da idolatria ao país e queixavam-se de que agora a apostasia tinha apoio no palácio real. Logo houve quem compa¬rasse a Rainha com Jezabel, todavia, somente em círculos privados.
Carlos herdou de seu pai os conflitos com o Parlamento em matéria religiosa. Pouco antes de morrer, James havia posto fim às pregações dos puritanos, decretando que era permitido pregar somente em certas oportunidades e sobre certos tópicos. Além disso, em 1618, promulgou o Código dos Desportes, que devia ser lido em todas as igrejas, e que rebatia a tese dos puri¬tanos sobre o modo de guardar o Dia do Senhor.
Todos os receios entre o Parlamento e a coroa manifestaram-se no processo de Richard Montague. Este era um forte adversário dos puritanos, contra os quais publicou vários livros em tom mordaz e depreciativo. Era também defensor do direito divino dos reis. Em função da publicação de um dos seus livros mais ofensivos contra o Parlamento, a Câmara dos Comuns exigiu o seu comparecimento diante dela, instaurou processo e o condenou a prisão e multa. Mas o Rei Carlos I, oportunamente, livrou-o da condenação, nomeando-o seu capelão. O Parla¬mento irritou-se e, prontamente, sua hostilidade dirigiu-se ao Duque de Buckingham, ministro da coroa, a quem se falava de processar por delito de alta traição.
O Rei declarou dissolvida a Assembleia Parlamentar. Mas, igualmente ao seu pai, que o precedeu, necessitava de fundos que unicamente o Parlamento podia votar. Muitos dos bispos correram em sua ajuda, e houve numerosas pregações acerca da necessidade de se apoiar o Rei. Mas os fundos iam-se escasseando, e o soberano teve que recorrer a medidas cada vez mais coercivas. O partido dos bispos declarou-se favorável às teses mais exageradas sobre os direitos dos reis. O Arcebispo de Canterbury, que tratava de tomar medidas conciliatórias frente aos puritanos, viu-se privado de quase todos os seus poderes, concedidos pelo Rei a uma comissão sob a presidência de William Laud, um dos mais decididos adversários do puritanismo.
Repetidamente, por falta de fundos, o Rei convocou o Parlamento. Mas sempre se viu obrigado a declará-lo dissolvido, pois a Câmara dos Comuns insistia em tratar dos pontos de conflito antes de votar os fundos que o trono requeria. Aos maiores partidários da Câmara dos Comuns, Carlos nomeou lordes, com o que os apartou da posição em que podiam prestar-lhe maior apoio. A Câmara Baixa, desprovida dos realistas mais decididos, foi se tornando cada vez mais radical. Entretanto, muitos dos velhos lordes, ofendidos pelas honras dadas aos novos mem¬bros da Câmara dos Lordes, apartaram-se também da causa do Rei. Quando, em 1629, o Rei declarou dissolvido o terceiro Parlamento do seu reinado, estava disposto a governar sem esta assembleia legislativa e voltou a convocá-la somente onze anos mais tarde.
Esses onze anos de governo pessoal de Carlos l foram uma época de prosperidade para as classes elevadas do país. Porém, a alta dos preços foi muito mais rápida que a dos salários e, portanto, a maioria da população sentiu-se cada vez mais oprimida pela ordem existente.
Para obter os fundos de que necessitava, Carlos fazia concessões aos poderosos, que, por sua vez, oprimiam aos pobres. Ainda que o rei desse mostra de interesse por eles e tomasse algumas medidas para aliviar sua situação, o fato era que a ordem social e política causavam mais desgraças que as fra¬cas medidas do rei não podiam reparar. Cada vez mais e particularmente nas regiões industriais, o Rei e os bispos, que apoiavam sua causa dando-lhe aprovação religiosa, eram vistos como inimigos do povo. Ao mesmo tempo, os puritanos que atacavam os excessos da coroa e dos bispos, ganhavam popularidade.
Em 1633, William Laud foi feito arcebispo de Canterbury. Era um homem cuidadoso com a beleza do culto e convencido de que o bem estar social requeria uma igreja monolítica. Suas medidas contra os puritanos foram cada vez mais cruéis, e não faltaram penas de morte nem mutilações ordenadas por ele. Carlos cometeu o erro de dar-lhe plenos poderes sobre a Escócia, on¬de Laud tratou de impor a liturgia e outros elementos da Igreja Anglicana. Isto deu motivo a um motim, que logo se tornou rebelião.
Quando a Assembleia Geral da Escócia quis limitar o poder dos bispos, as autoridades reais a declararam dissolvida. Mas a Assembleia negou-se a obedecer a ordem real e respondeu decla¬rando nulo o episcopado e reorganizando a Igreja da Escócia sobre bases mais calvinistas e presbiterianas.
Dada a atitude da Assembleia Geral da Escócia, a guerra era inevitável. O Rei necessitava de exércitos e de fundos para sustentá-la e, portanto, decidiu apelar ao seus súditos irlandeses, entre os quais o catolicismo e os sentimentos anticalvinistas eram fortes. Para isso, contou com o apoio da Rainha que continuava católica. Mas tais medidas serviram somente para criar laços entre os calvinistas escoceses e os puritanos ingleses. O resultado foi que, quando o Rei convocou o Parlamento inglês para que votasse fundos para a guerra contra os rebeldes escoceses, viu-se obrigado a dissolvê-lo em poucos dias de reunião. Este foi o chamado "Parlamento Curto" de 1640. Animados por tais acontecimentos, os escoceses invadiram o território inglês e, diante deles, as tropas do Rei bateram em reti¬rada. Uma vez mais, ao Rei não lhe restou outro remédio senão convocar novamente o Parlamento. Essa assembleia legislativa, que começou suas sessões em novembro de 1640, receberia de¬pois o nome de "Parlamento Longo" e seria de grande importância para a história da Inglaterra.

O Parlamento Longo
Os últimos anos antes da convocação dessa nova assembleia, tinham trazido dificuldades económicas. Os desajustes sociais e económicos, que antes haviam prejudicado unicamente os pobres e os trabalhadores, começaram a afetar também os co¬merciantes e industriais. Logo, quando ocorreram as eleições para o Parlamento, a maioria representava o descontentamento com a coroa, tanto por razões económicas como por motivos religiosos. E isso acontecia, não apenas com os comuns, mas também com os lordes, que, em tempos recentes, haviam-se unido à nova classe burguesa em empresas mercantis.
O novo Parlamento, imediatamente, mostrou-se mais resistente que os anteriores. O Rei o tinha convocado para que votasse fundos que permitissem organizar um exército e expulsar do território inglês os rebeldes escoceses. Mas os parlamentares sabiam que o seu poder devia-se precisamente à presença desses escoceses em solo inglês e não se mostravam dispostos a resolver essa situação com muita rapidez.
Primeiro, preocuparam-se em tomar medidas contra os que, em anos recentes, haviam tentado destruir o puritanismo. As vítimas do arcebispo Laud, que ainda viviam, foram postas em liberdade e receberam indenizações. Lorde Strafford, um dos ministros mais fiéis ao Rei, foi processado e condenado à morte sem que o soberano fizesse muita coisa para salvá-lo.
Depois, o Parlamento tratou de assegurar-se que suas medidas teriam valor permanente. Em maio de 1641, aprovou uma lei segundo a qual a assembleia não podia ser dissolvida pelo Rei, sem a anuência de seus membros. Ainda que tal lei o privas¬se de muitos de seus poderes, Carlos fez pouco por evitá-la, pois tinha decidido resolver suas dificuldades mediante uma série de intrigas que não cabe relatar aqui. Quando, por fim, o Parlamento começou a tomar medidas para arrecadar os fundos necessários para expulsar os escoceses, soube-se que Carlos estava se aliando a eles. Mas os escoceses, que eram calvinistas, sa¬biam que o parlamento inglês lhes era muito mais favorável do que o Rei e, por isso, as empresas do soberano fracassaram.
Pela mesma época, os católicos irlandeses rebelaram-se e não faltou no Parlamento quem acusasse a Rainha de animar a insurreição. Em vista da duplicidade, tanto real como suposta dos soberanos, os protestantes mais radicais uniram-se em um grupo decidido a limitar mais o poder da coroa.
Os bispos, como membros da Câmara dos Lordes, eram o principal apoio de Carlos no Parlamento. Mas a Câmara dos Comuns iniciou processo contra vários deles. Quando os bispos intentaram participar das reuniões do Parlamento, o povo de Londres amotinou-se e os impediu o acesso na Assembleia. Animados por tais êxitos, os radicais entre os puritanos anunciaram que preparavam um processo contra a Rainha, a quem acusavam de ter causado as desordens na Irlanda.
Essas medidas extremas começaram a produzir uma reação contra os puritanos. Entre os lordes, muitos pensavam que era hora de restaurar a normalidade. Provavelmente, se Carlos tives¬se sido mais comedido e paciente, o tempo lhe daria a vitória. Mas o Rei "perdeu as estribeiras". Acusou ante a Câmara dos Lordes, os principais chefes dos Comuns, mas a câmara alta rebateu a acusação. Quando o Rei ordenou a detenção dos acusados, os parlamentares se negaram a entregá-los. No dia seguinte, um contingente militar enviado pelo Rei para deter os acusados, encontrou os que tinham fugido e buscado refúgio em Londres, de onde voltaram a se reunir para continuar suas sessões. Desde então, o chefe dos rebeldes, John Pym, governava como "rei sem coroa". Perdida a capital, o Rei retirou-se a seus palácios de Hampton Court e Windsor.
A Câmara dos Comuns propôs, então, uma lei que excluía os bispos da Câmara dos Lordes. Tal lei vingou, o rei não pôde por reparos, e os prelados foram expulsos. Desse modo, começa¬va um processo que iria excluindo do Parlamento os elementos opostos ao puritanismo e que, portanto, daria à assembleia um caráter cada vez mais radical.
Por fim, o Parlamento deliberou que se recrutasse uma milícia. Posto que estas tropas estariam sob o comando do Parlamento, e não do Rei, este decidiu que havia chegado o momento de tomar açâo decisiva. Reuniu as tropas que pôde, desfraldou seu estandarte e preparou-se para lutar contra as milícias parlamentares. Os conflitos entre a coroa e o Parlamento haviam levado, por fim, à guerra civil.

A Guerra Civil
Tanto o Rei como o Parlamento se dedicaram, imediatamente, ao recrutamento de suas tropas. Carlos encontrou seu principal apoio entre os nobres. O Parlamento, por sua parte, recrutou seus soldados entre as classes que mais haviam sofrido durante os últimos anos. Os trabalhadores e os desempregados foram o grosso desse exército, ao que se somaram os comerciantes. A força de Carlos estava principalmente na cavalaria, corpo tradicionalmente recrutado entre a nobreza. A do Parlamento estava na infantaria e na frota marítima, para o qual o comércio era importante.
A princípio, os exércitos rivais se limitaram a marchas e contra-marchas, que não produziram mais que algumas conten¬das. Entretanto, cada partido buscava outros pontos de apoio. Como era de se esperar, os parlamentares se achegaram aos esco¬ceses. Isso, por sua vez, obrigou a Carlos buscar ajuda entre os católicos irlandeses. Essas atitudes por parte do Rei, sem dúvida, resultaram em seu prejuízo, pois as diversas facções entre os puritanos uniram-se ante a ameaça de uma intervenção católica.
Em seus esforços de aproximar-se dos escoceses, o Parlamento viu-se obrigado a tomar medidas que o levavam rumo ao presbíterianismo. Esse tipo de organização eclesiástica que prevalecia na Escócia, não era bem vista por todos os ingleses. Ademais, embora muitos acreditassem que o episcopado era parte necessária da igreja, havia outros que preferiam um governo eclesiástico do tipo congregacional — os "independentes".
A maioria parece haver pensado que, ainda que o episcopado não se opusesse necessariamente às Escrituras, constituía-se no principal aliado da monarquia e, portanto, era necessário aboli-lo. Segundo alguém disse: "os que odeiam os bispos, os odeiam mais que ao Diabo, e os que gostam deles, gostam menos que sua comida".
Posteriormente, o episcopado foi abolido, em parte porque era partidário do Rei, em parte por razões teológicas e, em parte, porque, confiscando suas rendas, o Parlamento podia obter fundos sem criar novos impostos.
Entretanto, o Parlamento convocou uma assembleia de teólogos para o aconselhar em matéria religiosa. Esta é a famosa Assembléia de Westminster, que continha, além de cento e vinte e um ministros e trinta leigos nomeados pelo Parlamento, oito comissários escoceses. Visto que os escoceses representavam, naquele momento, o mais forte exército que existia na Grã-Bretanha, o valor de seus comissários na Assembleia foi decisivo. Mais para frente, teremos oportunidade de voltar ao conteúdo teológico da Assembléia de Westminster, cuja Confissão veio a ser um dos principais documentos da ortodoxia calvinista. Rapidamente, basta assinalar que, embora alguns de seus membros fossem independentes, e outros se inclinassem frente ao episcopado, logo a Assembleia dediciu-se a favor da forma presbiteriana de governo eclesiástico e a recomendou ao Parlamento que a estabelecera.
Esse corpo, no qual havia bom número de independentes, não tendia, a princípio, dirigir-se ao presbiterianismo. Mas a marcha da guerra obrigou-o a formar com os escoceses uma Solene Liga e Pacto, que o comprometia a dirigir a organização da igreja para o presbiterianismo. Este foi estabelecido em 1644 e, no ano seguinte, o arcebispo Laud foi executado por ordem do Parlamento. Tudo isso deu tempo aos puritanos para formarem seu próprio exército, com o qual enfrentariam o do Rei.
Foi nessa época que recebeu proeminência o puritano Oliver Cromwell. Este era um homem relativamente acomodado, descendente de um dos conselheiros de Henrique VIII. Uns poucos anos antes, havia abraçado o puritanismo e era um assíduo estudioso da Bíblia. Para ele, toda decisão, tanto política como pessoal, devia ser tomada indagando-se seriamente qual a vontade de Deus. Por isso, ainda que frequentemente vacilasse antes de tomar uma decisão, uma vez decidido, mostrava-se inflexível em seu rumo. Não era orador, nem pessoa dada aos sofismas políticos. Mas a profundidade e firmeza de suas convicções, logo lhe atraíram o respeito dos demais puritanos. Até o começo da guerra civil, não havia tido mais participações nos conflitos de seu tempo do que algumas intervenções nos debates da Câmara dos Comuns, da qual era membro.
Ao ver que os acontecimentos levavam à luta armada, Cromwell regressou às suas terras onde recrutou um pequeno contingente de cavalaria. Estava convencido de que a principal arma do Rei era sua cavalaria, e que o Parlamento tinha necessidade de um corpo semelhante. Seus soldados se inflamaram com o zelo de seu chefe e, prontamente, aquele núcleo tornou-se um grande corpo de cavalaria. Para eles, e depois para boa parte do exército parlamentário, o que estava ocorrendo era uma guerra santa. Antes de marchar para o combate, liam as Escrituras e oravam, e depois cantavam salmos em meio à luta. Repetidamente, derrotaram os realistas que foram, por fim, aniquilados na batalha de Naseby.
Todavia, aquela batalha teve consequências piores para o Rei, pois os rebeldes tornaram-se donos do acampamento real onde se apoderaram de documentos que provavam que Carlos havia negociado com os irlandeses e com outros para fazer desembarcar na Inglaterra tropas católicas e estrangeiras. Desde então, começou a crescer o partido dos que propugnavam a deposição do Rei.
Em meio a seus infortúnios, Carlos decidiu recorrer a seus súditos escoceses, pensando ganhá-los com diversas promessas. Mas os escoceses o fizeram prisioneiro e, através de uma série de negociações, o entregaram ao Parlamento.
Parecia, assim, que a guerra civil havia terminado. Os puritanos haviam prevalecido sobre o partido dos bispos e do Rei, e se dedicaram a implantar suas reformas. Promulgaram-se leis ordenando que se dedicasse o Dia do Senhor aos exercícios religiosos, e se legislou também acerca dos costumes e dos passa¬tempos frívolos. Assim, houve quem se queixasse de uma ditadu¬ra puritana.
Mas os puritanos, unidos quando se tratava de opor-se ao Rei e aos bispos, viram sua unidade desvanecer-se tão rápido como se fizeram vencedores. Em síntese, havia dois partidos: o dos presbiterianos, que contava com a maioria do Parlamento, advogava por uma igreja nacional e uniforme, porém constituída, não segundo os princípios episcopais, mas segundo os do presbiterianismo; e os independentes, particularmente numerosos no exército, pertenciam a diversas seitas, cada qual com o seu ponto de vista. Mas todos os independentes concordavam em que não devia haver uma igreja uniforme para todo o país e que se devia permitir que cada grupo seguisse seu curso, ou sua forma de governo, independentemente dos demais, sempre que não violassem os princípios bíblicos, nem ofendessem a moral. Ambos os partidos concordavam em desfazer-se dos bispos e em limitar o poder do Rei. Mas, uma vez cumprido esse pro¬pósito, seus programas eram tão distintos que tinham que se chocar.
Tudo isto deu lugar a crescentes tensões entre o exército, em sua maioria independente, e o Parlamento que buscava a uniformidade mediante a fórmula presbiteriana. Em 1646, o Parlamento tratou de despedir o exército, mas este negou-se a de¬bandar. Em meio ao conflito, adquiriram força no exército movimentos tais como os da "Quinta Monarquia", os "niveladores", e outros, muitos dos quais diziam que o Senhor estava pronto a retornar e que era necessário transformar a ordem social, estabelecendo justiça e equidade.
Isso produziu maior intransigência por parte do Parlamento, que temia que a desordem causada pela guerra civil levasse ao caos. E o exército começou a dizer que, uma vez que nele havia uma representação mais ampla do povo, era ele, e não o Parlamento, quem podia falar em nome do povo.
Assim estavam as coisas, quando o Rei fugiu e começou a negociar com os escoceses, com os parlamentares e com o exército, fazendo a todos promessas que se contradiziam.
Por fim, chegou com os escoceses a um acordo, mediante o qual se comprometia a estabelecer o presbiterianismo em ambos os reinos (Escócia e Inglaterra), em troca de que lhe devolveriam o trono que parecia perdido. Mas, ao mesmo tempo, continuava negociando com o Parlamento. O resultado foi que, tão logo o exército conseguiu vencer os escoceses (agosto de 1648), dirigiu sua fúria tanto contra o Rei como contra o Parlamento.
Em dezembro desse mesmo ano de 1648, o exército arrebatou do Parlamento a pessoa do Rei. Uns poucos dias mais tarde, começou uma limpeza no Parlamento por parte do exército. Quarenta e cinco parlamentares foram detidos, e quase o dobro desse número ficou proibido de assistir às sessões. Dos restantes, vários se negaram a tormar parte de um corpo tão mutilado. Ao que restou, seus adversários deram o nome de "Os Restos do Parlamento" (Rump Parliament).
Esse Parlamento foi aquele que, poucos dias mais tarde, iniciou o processo contra Carlos, a quem acusava de alta trai¬ção e de haver sumido do país, na guerra civil. Os catorze lordes que se atreveram a assistir a sessão da Câmara Alta, no dia que se apresentou o processo contra o Rei, negaram-se unanimemente a dar-lhe andamento. Mas a Câmara dos Comuns, simplesmente, continou o processo, e Carlos, que recusou defender-se porque seus supostos juizes não tinham jurisdição legal, foi decapitado a 30 de janeiro de 1649.

O Protetorado
Os escoceses, temerosos por perderem sua independência, apressaram-se em reconhecer como rei Carlos II, filho do falecido rei. Os irlandeses, por seu lado, aproveitaram as circunstâncias para se rebelarem. Dentro da própria Inglaterra, os independentes se dividiam cada vez mais. Entre os mais radicais, apareceu o movimento dos diggers (escavadores), cujo profeta propunha uma nova ordem social onde havia um direito univer¬sal, não só à liberdade e ao sufrágio, mas também à propriedade.
Tais pregações também atemorizavam as classes mercantis que, até pouco antes, haviam sido um elemento importante na opo¬sição ao Rei. Os presbiterianos, por seu lado, insistiam em seu empenho de impor seu sistema de governo e sua forma de culto em toda a igreja da Inglaterra. O caos ameaçava apossar-se do país.
Foi em meio a tais circunstâncias que Cromwell tomou as rédeas do Estado. Ainda que não tivesse participado da limpeza do Parlamento, depois a aprovou e, em nome de "Os Restos do Parlamento", aniquilou primeiro a rebelião irlandesa e, logo em seguida, o pequeno monarca que havia aparecido na Escócia. Derrotado, Carlos II refugiou-se no continente. Mas tudo isso não resolvia o problema de um Parlamento que havia continua¬do por longo tempo, e cujo remanescente não representava verdadeiramente o povo. Quando esse Parlamento decidiu perpetuar-se no poder mediante um projeto de lei, Cromwell se apresentou na sala das sessões, retirou, aos poucos, deputados que ficaram e fechou o edifício com chave.
Desse modo, e ao que parece contra sua própria vontade, Cromwell tornou-se árbitro supremo dos destinos do país. Durante vários meses, buscou o modo de voltar à legalidade com o título de Protetor. Segundo o Instrumento de governo, que servia de carta fundamental da nova ordem, o Protetor governaria com a assistência de um Parlamento que representaria a Inglaterra, Escócia e Irlanda. Mas, na realidade, estes dois últimos países tinham uma representação ínfima e, em todo caso, era o Protetor quem governava verdadeiramente.
Cromwell dedicou-se inteiramente a um programa de reforma tanto na igreja como no governo. Sua política religiosa foi relativamente tolerante devido ao ambiente da época. Ainda que ele mesmo tivesse idéias independentes, tratou de criar um sistema eclesiástico em que coubiam tanto os independentes como os presbiterianos, os batistas e, até, alguns partidários moderados do regime episcopal. Como bom puritano, empenhou-se, além disso, num programa de reformar os costumes e logo ter leis sobre o Dia do Senhor, sobre as corridas de cavalos, as brigas de galos, o teatro, e outras atividades.
No campo econômico, o governo de Cromwell favoreceu a classe média em prejuízo particular a dos magnatas, mas também, em certa medida, a dos mais pobres. Entre ambos os extremos, foi crescendo a oposição ao Protetorado e as saudades da monarquia.
No campo político, Cromwell teve bom êxito, enquanto conseguiu dominar o país durante sua vida. Mas seus sonhos de criar uma república estável fracassaram. Igualmente aos reis James e Carlos, que lhe antecederam, foi-lhe difícil governar em harmonia com o Parlamento — apesar de que, quando seus partidários não gostaram do que havia sido eleito, proibiram a muitos de seus opositores ocupar seus lugares, de modo que o que existiu foi um novo "resto de Parlamento".
Convencidos da impossibilidade de manter o Protetorado, os parlamentares chegaram a oferecer a coroa a Cromwell. Mas este se negou, talvez por escrúpulos pessoais, ou por agudeza política. Em todo caso, a necessidade de chegar a considerar tal extremo mostra até que ponto tornou-se difícil instalar a república.
Em 1658, pouco antes de morrer, Cromwell indicou que seu sucessor devia ser seu filho Ricardo. Ainda que este tenha herdado o título de seu pai, precisava de seus dotes, e logo o país viu-se à beira de uma nova guerra civil. Traído e levado entre o Parlamento e o exército, Ricardo Cromwell renunciou ao protetorado e retirou-se para a vida privada.

A Restauração
O fracasso do Protetorado não deixava outra alternativa a não ser a restauração da monarquia. O general Monck, que estava no comando de uma ala do exército, marchou sobre Londres e convocou um novo Parlamento ao qual deviam assistir também os lordes. Quando essa assembleia se reuniu, começaram as negociações com Carlos II que foi restaurado ao trono, depois de ter recebido as garantias necessárias.
A restauração dos Stuart trouxe uma onda de reação contra os puritanos. Ainda que o próprio Carlos a princípio quisesse dar um lugar aos presbiterianos na igreja nacional, o Parlamento mostrou-se inclinado para o anglicanismo tradicional. Além de voltar a instaurar o episcopado e o Livro de Oração Comum, o novo governo ditou leis contra os dissidentes, para quem já não havia lugar na igreja oficial. Proibiram-se os cultos que seguiam outro ritual do que o determinado pelo governo. E os ministros que não o aceitavam eram proíbidosde pregar. Essas leis e outras de semelhante tom não conseguiram destruir a multidão de mo¬vimentos que surgiram na Inglaterra. Simplesmente, os colocaram a margem da Igreja oficial onde a maioria continuou existindo, até que voltaram a tolerá-los, já perto do final do século.
Na Escócia, a restauração da monarquia teve consequências ainda mais severas. Esse país era fortemente presbiteriano e ago¬ra, por decreto real, sua igreja fora reorganizada e colocada debaixo de um regime episcopal. Os ministros presbiterianos foram privados de seus direitos e foram substituídos por pessoas de persuasão episcopal. Prontamente, aconteceram motins e rebeliões, e o arcebispo supremo da Escócia, James Sharp, foi assassinado. Com o apoio dos ingleses, os elementos realistas esmagaram as rebeliões, cruelmente afogadas em sangue.
Carlos II declarou-se católico no leito de morte, confirmando as piores suspeitas dos puritanos perseguidos. Seu irmão e sucessor, James II, era católico e estava dedidido a restaurar o catolicismo romano como a religião oficial de seus reinos. Na Inglaterra, tratou de abrir o caminho ao catolicismo decretando a tolerância religiosa. Em sua visão, esperava ganhar com isso o apoio dos grupos dissidentes. Mas o sentimento anti-católico entre tais grupos era tal que se negaram a aceitar o edito de tolerância, ainda que os beneficiasse grandemente. Na Escócia, todavia, as condições eram piores. James II (o sétimo rei com esse nome na Escócia) decretou pena de morte para quem assis¬tisse cultos não autorizados e colocou boa parte dos assuntos do país nas mãos dos católicos. Como na Inglaterra, tratou de decretar a tolerância para com os católicos. Mas os presbiterianos escoceses, tampouco a aceitaram.
Depois de três anos debaixo de James II, os ingleses se rebelaram e convidaram a Guilherme, Príncipe de Orange, e sua esposa Maria, a ocupar o trono. Guilherme desembarcou na Inglaterra em 1688, e James fugiu para a França. Na Escócia, o partido de James subsistiu por alguns meses. Mas, no ano seguin¬te, Guilherme e Maria também foram proclamados soberanos desse país. A política religiosa de Guilherme e Maria foi, no geral, tolerante. Na Inglaterra, deu-se liberdade de culto a toda pessoa que assinasse os Trinta e nove artigos de 1562 e que jurasse fidelidade aos soberanos. Na Escócia, o presbiterianismo foi feito a religião oficial do Estado e a Confissão de Westminster, sua norma doutrinária.
Como em tantos outros países (já vimos os casos da França e da Alemanha), todas estas lutas por motivos confessionistas, levaram muitos à conclusão de que as questões doutrinárias não mereciam tanto sangue, nem tanta contenda. Logo, ainda que o resultado na área política tenha sido uma maior tolerância, isso foi possível graças à crescente indiferença em matéria religiosa. Uma vez mais, as amargas lutas sobre o dogma acabaram na dúvida.
A história do puritanismo, não obstante, não ficaria completa se não nos referíssemos, mesmo que brevemente, as suas duas grandes figuras literárias: João Bunyan e João Milton. A mais importante obra do primeiro, geralmente conhecida sob o título O Peregrino converteu-se em um dos livros de devoção mais lidos e, portanto, serviu para levar a semente puritana aos mais afastados rincões. Milton, por sua vez, é considerado um dos mais notáveis poetas da literatura inglesa, e seu Paraíso Perdido conta-se entre as obras mestras dessa literatura. Ambos, Bunyan e Milton, continuaram proclamando a mensagem puritana através das gerações.
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Sou pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, mestrando em Divindade (Magister Divinity), pelo CPAJ (Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper). Sou também professor de História da Igreja, de Introdução Bíblica, e Cartas Gerais, na Escola Teológica Rev. Celso Lopes, em Maceió AL. Além disso, sou coronel-aviador da Força Aérea Brasileira, já reformado.

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